Assim que chegaram a Damasco e derrubaram o ditador Bashar Al-Assad, os rebeldes da organização islâmica Hayat Tahrir al Sham (HTS), liderada por Abu Mohammed Al-Jawlani, começaram a discutir a transferência do poder. O antigo primeiro-ministro sírio, Mohammad Al-Jalali, admitiu à Al-Arabiya TV que concordou em entregar o controlo do país ao autodenominado “Governo de Salvação”, formado pelos insurgentes. O HTS nomeou Mohammed Al-Bashir, responsável pelo governo do norte da Síria e da província de Idlib, como primeiro-ministro, após o avanço dos milicianos.
Os seguidores de Al-Jawlani também anunciaram anistia a todos os soldados recrutados para o Exército Sírio durante o regime de Al-Assad. Esta segunda-feira, o líder dos rebeldes, que abandonou o seu nome de guerra e mudou o nome para Ahmad Al-Sharaah, reuniu-se com Al-Jalali “para coordenar uma transferência de poder que garanta a prestação de serviços” à população, disse o rebeldes, através de um comunicado. Até o Baath, o partido histórico de Bashar Al-Assad, anunciou que apoia uma transição “para defender a unidade do país”.
O grande temor é que os 28 grupos rebeldes travem uma disputa interna pelo poder. Tarde da noite, a Alemanha e a França tornaram-se os primeiros países da comunidade internacional a declararem-se “condicionalmente” prontos para “cooperar” com a nova liderança síria. O paradeiro de Al-Assad ainda é um mistério. O Kremlin recusou-se a confirmar se o ex-ditador recebeu asilo do presidente Vladimir Putin em Moscovo.
Em meio ao vácuo governamental na Síria, as Forças de Defesa de Israel (IDF) mobilizaram tropas na zona de contenção na borda do planalto das Colinas de Golã – anexada pelo Estado Judeu – depois que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ordenou a “tomada” da zona desmilitarizada. Israel ocupa a maior parte da região há 57 anos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou que as manobras militares israelitas “constituem uma violação” do acordo de retirada de 1974 assinado com a Síria. A justificativa do governo Netanyahu é que existe o risco de “infiltração de indivíduos armados” na zona de contenção. O Ministério das Relações Exteriores de Israel confirmou que bombardeou “depósitos de armas químicas” na Síria no fim de semana, logo após a queda de Al-Assad.
O movimento xiita libanês Hezbollah condenou a intensificação dos ataques aéreos israelitas na Síria e garantiu o apoio ao povo sírio, além de sublinhar a necessidade de preservar a unidade do país. Esta segunda-feira, milhares de sírios aglomeraram-se em frente à infame prisão de Saydnaya, conhecida como “matadouro”, em busca de informações sobre familiares.
Os Capacetes Brancos, da Defesa Civil Síria, juntaram-se à população nos esforços para destruir parte das instalações e tentar chegar aos prisioneiros que estavam detidos em masmorras, até dois ou três andares abaixo da superfície. Nas redes sociais, imagens de uma “imprensa humana” causaram indignação e indignação: uma espécie de cama onde os presos eram amarrados e esmagados por uma estrutura de ferro.
O Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH), uma organização não governamental sediada no Reino Unido que monitoriza o conflito, estimou no domingo que pelo menos 910 pessoas, incluindo 138 civis, morreram desde o início da ofensiva rebelde, em 27 de novembro. , Al-Jawlani discursou na mesquita omíada, pouco depois da entrada triunfal em Damasco, e dedicou a vitória dos insurgentes a “toda a comunidade islâmica”.
Aos 42 anos, Al-Jawlani cortou a barba e garantiu que se distanciou da rede terrorista Al-Qaeda e do Estado Islâmico, da qual fazia parte. Ele também adotou roupas militares ocidentais. Os Estados Unidos adicionaram o HTS à lista de organizações terroristas.
Extremismo
Um dos mais renomados especialistas em Síria, Joshua Landis — diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de Oklahoma (Estados Unidos) — disse Correspondência que Al-Jawlani deixou bem claro que não haverá espaço para o extremismo na Síria. “Ele disse que quer continuar amigo de todos e que os únicos inimigos da Síria serão o Irão e o Hezbollah. Se Al-Jawlani não declarar guerra aos Estados Unidos e afirmar que está a tentar construir um governo e alimentar a população, o Os Estados Unidos serão mal vistos se não concordarem com isso”, alertou. “Pelo que ouvi das pessoas em Washington, Al-Jawlani tem procurado contacto com o governo americano.”
Ainda segundo Landis, um indício preocupante é que, sob o controle do grupo HTS, não havia democracia na província de Idlib. “Na região havia uma situação estranha, com ‘toneladas’ de refugiados. Mas, Al-Jawlani não teria debatido a democracia com os EUA. Sob o regime de Al-Assad, uma das maiores exigências da Casa Branca era a observância da Resolução 2254 da ONU, que apela à transição democrática na Síria”, disse ele. O estudioso considera Al-Jawlani muito menos dogmático que os iranianos. “Ele demonstrou flexibilidade e capacidade para tentar cortejar as minorias sírias e a comunidade internacional”.
Historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Chico Teixeira explica que o grupo que assume o governo é uma “grande federação” de forças contrárias ao antigo regime sírio, instaurado desde a ditadura de Hafez Assad, pai de Bashar Al-Assad, em 1971. “A primeira declaração de Al-Jawlani, feita numa mesquita — um sinal do carácter religioso do governo que pretende implementar — foi contra o Irão. Depois, a embaixada do Irão foi invadida e destruída”, lembrou ao Correspondência.
Segundo Teixeira, o HTS segue a linha sunita do Islão, enquanto o regime de Al-Assad era uma dissidência alauita com tendência xiita, como o Irão. “Formou o grande arco xiita, vindo do Irão, passando pelo Iraque, até ao norte da Síria e do Líbano, contra as formas sunitas, que são homogéneas e dominantes na Jordânia, no Egipto e na Arábia Saudita”, disse. “Ao mesmo tempo, o HTS é um grupo muito próximo da rede terrorista Al-Qaeda e do Estado Islâmico. As duas facções terroristas vão agora competir pelo controlo da Síria”, alertou.
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