A Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) condenou El Salvadornesta sexta-feira (20/12), por violência obstétrica no episódio que ficou conhecido como “Caso Beatriz”.
A jovem de 22 anos tornou-se um símbolo no país, que tem uma das leis antiaborto mais restritivas do mundo. El Salvador proíbe procedimento em todas as circunstâncias, com penas de 30 a 50 anos de prisão para mulheres acusadas de homicídio qualificado.
O caso, iniciado em 2013, foi o primeiro relacionado à negação do aborto a ser julgado pela Corte Interamericana. Porém, a sentença desta sexta não menciona o direito ao aborto.
Beatriz sofreu lúpus eritematoso sistêmicouma doença na qual o sistema imunológico ataca os tecidos saudáveis do corpo.
Essa condição colocou em risco a vida dela e do bebê durante a primeira gravidez. Seu filho nasceu prematuro, pesando menos de 2 quilos.
Um ano e meio depois do nascimento do primeiro filho, Beatriz descobriu que estava grávida novamente. Ela sentiu medo de enfrentar as mesmas complicações que o lúpus causou na primeira gravidez.
Os médicos alertaram que o feto tinha anencefalia: malformação congênita que impede o desenvolvimento do crânio e do cérebro, órgão responsável por controlar as funções do corpo.
Embora as leis salvadorenhas proibissem a interrupção da gravidez em qualquer circunstância, Beatriz pediu autorização para fazer um aborto na 12ª semana de gravidez.
A interrupção da gravidez havia sido recomendada por uma comissão médica composta por 15 especialistas para salvar a vida da jovem, que na época tinha 22 anos. Porém, o pedido foi negado.
A Justiça salvadorenha autorizou a cesariana na 26ª semana, quando a saúde de Beatriz estava mais comprometida, mas dentro do marco legal que considerava o procedimento um parto prematuro, e não um aborto. A menina nasceu de cesariana e faleceu 5 horas depois.
Dez anos depois dessa decisão, em março de 2023, a mãe da jovem, Delmy, compareceu à primeira audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Tribunal IDH). Na ocasião, ela concedeu entrevista à BBC News Mundo.
Leia a declaração abaixo.
‘Ela queria ter um filho’
A parte mais difícil da primeira gravidez de Beatriz foi a pré-eclâmpsia. Antes de entrar em trabalho de parto, ela recebeu uma transfusão de sangue. Quando fui vê-la, estava tremendo de frio. Ela foi internada com exaustão e dificuldade para respirar.
O menino nasceu prematuro, com muito baixo peso. Ainda tenho uma camiseta dele da época em que ele esteve no hospital. É uma camiseta bem pequena.
Quando me entregaram o bebê no hospital, ele cabia na palma da minha mão. Eu não chorei.
Beatriz me contou que quando o viu sentiu pena porque ele estava conectado a tantos tubos.
Pensávamos que ele não sobreviveria.
Essa foi a razão pela qual ela não se esterilizou após o primeiro parto: ela achava que o bebê não viveria. E ela queria ter um filho.
Beatriz nunca conseguiu amamentá-lo. Imagino que tenha sido por causa do remédio forte que ele estava tomando. [para tratar o lúpus]. O menino foi criado apenas com fórmula.
81 dias internado
Um dia, Beatriz acordou com feridas no rosto, como catapora. Formaram-se bolhas que, quando estouraram, liberaram pus e sangue. Com o tempo, as lesões se espalham por todo o corpo. Suas mãos e pés estavam cobertos de feridas.
Ela não conseguia andar. Eu colocava um pano para ela segurar com a ponta dos dedos e cobrir o corpo dela. Foi uma dor insuportável.
Beatriz não morava comigo, ela morava com o companheiro. Mas, quando apareceu o problema, ela me procurou para que eu pudesse acompanhá-la nas consultas.
Os exames revelaram que ela estava grávida. Foi um golpe muito duro, porque eu sabia que se engravidasse novamente passaria por um processo mais difícil que o primeiro, pois meu estado era mais crítico.
Levamos Beatriz ao Hospital Rosales. Eu precisava ir todos os dias de Usulután a San Salvador, uma viagem de duas horas de ônibus. Saí às 6h para chegar às 8h. Às vezes não me deixavam entrar antes da visita, às 11h ou às 12h.
Tentei chegar cedo porque a Beatriz não conseguiu comer até eu chegar – as mãos dela estavam enfaixadas por causa dos ferimentos.
Ela também não conseguia ir ao banheiro sozinha e dizia: ‘Tenho vergonha de pedir ajuda para as enfermeiras’.
Além disso, tinha dificuldade para comer: sentia dores na garganta e achava a comida do hospital horrível.
E era assim todos os dias.
Trabalhei numa fábrica de queijos e os meus colegas apoiaram-me para que eu pudesse estar envolvido neste processo. Beatriz e eu estávamos juntos no horário de visita. Quando disseram: “Vamos, vamos, todos os visitantes fora”, eu me escondi e depois voltei, dizendo para Beatriz: “Estou aqui, ainda não saí”.
Durante o tempo em que esteve internada no Hospital Rosales, Beatriz chorou de dores.
Quando a transferiram para a Maternidade, onde ocorreu todo o processo [da cesariana da segunda gravidez]ela me disse: “Quando você vai fazer o que você diz que vai fazer? Eu não quero mais ficar aqui.”
Ela ficou internada por 81 dias.
Eles a colocaram em um quarto pequeno, em frente ao posto de enfermagem, tão apertado que mal cabia em sua cama. Ela se sentia enclausurada e não podia ver seu primeiro filho.
Como o companheiro cuidava da criança, raramente conseguia estar com Beatriz. Mas depois que ela saiu do hospital, ela voltou a morar com ele e eles ficaram juntos.
Ela tinha um celular e acompanhava o que as pessoas diziam sobre ela. Ela foi discriminada. Diziam coisas terríveis, como: “Por que abrir as pernas se você estava doente?” Comentários nojentos.
Um dia cheguei na Maternidade para visitá-la e ela me disse: “Olha o que trouxeram para mim”. Era uma cesta [berço] com um cobertor. Perguntei: “E essas pessoas? O que elas querem?”
Foram aqueles que se opuseram [ao aborto]aqueles que dizem sim à vida. Eles não sabem o dano que causaram a Beatriz.
À noite, ela me ligava e dizia: “Estou desesperada. Quero acabar logo com isso.” Ela entrou em crise, sentiu como se estivesse morrendo.
Leilani, a ‘garota do céu’
Para mim foi muito difícil aceitar que o feto não completasse a gravidez.
Eu estava com a Beatriz no hospital quando vieram avisar que iam fazer cesárea. Forçaram minha filha a ter um bebê sem crânio, que morreu cinco horas após o nascimento.
Esperei lá fora; o procedimento durou cerca de duas ou três horas.
Na audiência [da Corte IDH]disseram que Beatriz viu o bebê. Mas ela não viu. Fui eu quem viu.
Assim que retiraram o bebê, o médico perguntou: “Quer vê-la? Mas não tire fotos, só olhe”.
Eu fui lá. Continuei olhando, tentando ver se ela conseguia mover os olhos, mas ela não conseguia.
Eu só a vi por alguns segundos.
Depois contei para uma enfermeira o que tinha visto e ela disse: ‘Essas crianças nascem assim, sem possibilidade de fazer nada, porque não têm cérebro’.
Ela tinha isso aqui [Delmy aponta o rosto]mas atrás [toca a parte de trás da cabeça]não havia nada.
Beatriz quis dar um nome e começou a pesquisar na internet até encontrar Leilani, que [em havaiano] significa ‘garota do céu’.
Colocamos Leilani Beatriz.
Depois disso, Beatriz isolou-se. Ela ficou mais irritada, mal sorrindo.
Tentamos encontrar maneiras de fazê-la se sentir melhor. Os irmãos dela até cantavam para ela, porque gostavam de cantar. ‘Calem a boca, rapazes. Não quero ouvir barulho nenhum’, ela ordenou.
Ficou um vazio nela, mas ao mesmo tempo foi um alívio, pois ela finalmente poderia estar com o outro filho, de quem ela queria viver para cuidar.
‘Você não sabe’
Com tudo o que aconteceu, fiquei doente. Comecei a ter pressão alta até explodir. Eu não queria comer e meu companheiro disse: ‘Come, senão você vai ficar ainda mais doente’.
Meus colegas de trabalho me apoiaram. Assimilei tudo com a ajuda de outras pessoas.
Outros fizeram comentários, vizinhos ou pessoas que gostam de tirar conclusões.
Até hoje perguntam: ‘Você é a favor do aborto?’ E eu digo: ‘Você não sabe.’
Dizem que é pecado, que as mulheres não deveriam fazer isso. Então coloquei o caso: ‘E se Beatriz fosse sua filha ou sua irmã?’. Aí eles calam a boca e não falam mais nada.
O mais difícil para mim foi não dar resposta à Beatriz, negar o direito que ela exigia.
Através de todo esse processo aprendi que é preciso lutar para que o caso dela não aconteça novamente.
Meu neto tinha cinco anos quando Beatriz morreu. Quando ela estava no caixão, ele tocou nela e disse: ‘Linda, levante-se.’ Ele pensou que ela estava dormindo.
Quando vamos ao cemitério, ele acena para o túmulo. Isso é muito difícil para nós.
Ele me chama de mãe, chama uma tia de mãe e também chama a companheira de mãe do pai. Talvez ele quisesse chamar todo mundo de mãe porque sentia falta do carinho de sua mãe.
Hoje ele tem 11 anos, mas ainda não fala bem. Não pronuncia as palavras corretamente. Ele está estudando no quarto ano.
Ele às vezes é afetuoso, mas outras vezes fica irritado.
Quero que meu neto cresça como um homem saudável e forte, que se torne um profissional. E, já adulto, quero explicar tudo o que Beatriz passou.
Também penso na minha neta. Deus sabe como ele lida com as coisas. Se Ele decidiu que ela não nasceria, deve ser porque ela é um anjo que agora está com Beatriz.
* Enviado especial a San José, Costa Rica, em março de 2023.
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