Os níveis recordes alcançados por dólar em dezembro, atingindo mais de R$ 6,30, trouxe um clima amargo ao final do primeiro semestre do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O forte desvalorização do real acabou ofuscando bons resultados de 2024, como o crescimento económico acima do esperadoa baixa taxa de desemprego e a aprovação do regulamentação da reforma tributária.
Por outro lado, a valorização da moeda americana lançou mais luz sobre a crise fiscal: a dificuldade do governo em equilibrar as contas públicas e controlar a sua dívida, fatores que tendem a alimentar a inflação e a manter as taxas de juros elevadas no país.
Segundo analistas ouvidos pela BBC News Brasil, os fundamentos econômicos do país não apontam para um dólar acima de R$ 6.
Para eles, o enfraquecimento da moeda brasileira reflete a saída de investidores do Brasil devido ao aumento da percepção de risco quanto à capacidade do governo de honrar suas dívidas no futuro.
De acordo com projeções do mercado financeiro recolhidas semanalmente pelo Banco Central, a previsão é que a dívida líquida do setor público passe de cerca de 63% do PIB este ano para 74% do PIB em 2027.
O novo cenário tem sido fortemente explorado pela oposição.
“O dólar fecha o dia com valor recorde de R$ 6,26. A política econômica de Lula 3 segue os passos do governo Dilma. Senadora Damares Alves (Republicanos/DF) em suas redes sociaissemana passada.
Os economistas entrevistados reconhecem que o desafio fiscal é complexo e anterior à atual gestão, mas dizem que Lula tomou decisões erradas na gestão das contas públicas que deixam o governo numa situação desconfortável pelos próximos dois anos.
Para Nelson Marconi, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp), um dos erros foi não ter feito o ajuste fiscal no início do governo, para depois colher os efeitos positivos das contas equilibradas , como foi feito no primeiro governo Lula (2003 a 2006).
Em vez disso, ele ressalta, um pacote de redução de custosque acabou tendo um impacto negativo devido ao anúncio simultâneo do aumento da Isenção de Imposto de Renda para rendimentos mensais de até R$ 5.000.
“Fizeram um anúncio completamente errado sobre esse pacote fiscal. Todos esperavam um pacote de contenção de custos e o governo vem anunciar uma isenção fiscal”, reforça.
Na visão de Claudia Moreno, economista do C6 Bank, o cenário ficou mais difícil para o governo porque a demora na adoção de medidas de contenção de gastos aumentou o custo de um ajuste fiscal agora, depois da alta do dólar.
“O câmbio nesse patamar mais alto atrapalha o trabalho do Banco Central [de conter a inflação] e exigirá juros mais elevados”, afirma.
“Com isso você também tem uma dinâmica de dívida pior [pois juros mais altos impactam na correção da dívida]. Então, queiramos ou não, o ajuste fiscal necessário acaba sendo maior do que era antes, com um nível de juros menor”, destaca.
Para o cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma, o governo Lula perdeu tempo ao não implementar mais cedo um ajuste nas contas públicas – e talvez agora seja tarde demais para reverter isso.
“O cenário hoje me parece muito complexo. Do ponto de vista político, 2025 foi o momento de pisar no freio e fazer um exercício de contenção muito robusto, para que, no final de 2025, o governo tivesse um arranjo em que poderia realizar um exercício de expansão muito robusto em 2026”, afirma.
“Vamos lembrar que Bolsonaro jogou um caminhão cheio de dinheiro no último ano de seu governo. Mas, do jeito que as coisas estão, talvez o governo Lula não tenha essa possibilidade”, compara.
O “caminhão do dinheiro” citado por Souza foi a chamada PEC das gentilezas, emenda à Constituição aprovada pelo Congresso que permitiu ao governo de JairBolsonaro aumentar os gastos em 2022 em R$ 41 bilhões com benefícios sociais, contornando as restrições eleitorais. Em agosto daquele ano, o Supremo Tribunal Federal considerou esta PEC inconstitucional.
“Talvez Lula não consiga ampliar gastos em 2026 porque está de muito mau humor [de alguns setores com o governo]tanta irritabilidade, que em parte deriva deste processo de polarização que vivemos, mas há também o facto de o governo fornecer uma razão. E esse parece ser um elemento-chave para entendermos esse final de ano”, analisa Souza.
Como Lula iniciou o governo ampliando os gastos
Depois que Bolsonaro encerrou seu governo com a PEC das Bondades, Lula iniciou o seu com a PEC da Transição, que permitiu que os gastos ultrapassassem o antigo teto de gastos em R$ 145 bilhões, com o objetivo de aumentar o valor do Bolsa Família e retomar políticas das instituições públicas que tiveram despesas contidas na gestão anterior, como o programa Farmácia Popular.
Além disso, a PEC deu espaço para Lula retomar a política de correção do salário mínimo acima da inflação, após anos de reajuste real zero.
O ganho real do mínimo é considerado fundamental pela gestão petista para melhorar a renda dos mais pobres. A medida, porém, tem forte impacto nas contas públicas, já que despesas relevantes como as pensões do INSS e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) estão vinculadas ao mínimo.
Para Claudia Moreno, do Banco C6, esse foi um dos erros do governo que contribuiu para a perda de confiança na política fiscal nestes dois primeiros anos.
Uma das medidas do novo pacote fiscal do Tesouro foi justamente conter o reajuste do mínimo.
Pelas novas regras aprovadas no Congresso, continuará sendo reajustado acima da inflação, mas o ganho real não poderá mais ultrapassar 2,5%, que é o limite geral para aumento de despesas estabelecido pelo Marco Fiscal (regra que substituiu o Teto de Gastos , adotada no governo Michel Temer).
A mudança foi avaliada positivamente por economistas preocupados com o equilíbrio das contas públicas, mas ainda assim foi considerada insuficiente.
Samuel Pessoapesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), destaca que as despesas vinculadas ao mínimo não aumentam apenas pelo reajuste do seu valor, mas também pelo aumento do número de benefícios, devido ao envelhecimento da população.
Portanto, mesmo com o teto de ganho real de 2,5%, essas despesas continuarão a subir mais rapidamente do que outras despesas, pressionando a dívida pública.
Os argumentos de Fernando Haddad
Os economistas entrevistados concordam que uma medida importante para equilibrar as contas públicas é a revisão dos benefícios fiscais (descontos fiscais para alguns setores), algo que tem sido defendido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas enfrenta resistência no Congresso Nacional.
Segundo estimativa da Receita Federal, essa renúncia fiscal totalizará R$ 544 bilhões em 2025, o equivalente a 4,4% do Produto Interno Bruto e cerca de um quinto das receitas administradas pela Receita.
Na sexta-feira, 20/12, em café da manhã com jornalistas, Haddad afirmou que a União fecharia 2024 com saldo positivo nas contas caso o Congresso tivesse aprovado a proposta do governo de revisão de alguns desses benefícios, evitando uma perda de R$ 45 bilhões na arrecadação.
Desse total, cerca de R$ 20 bilhões correspondem à desoneração da folha de pagamento para alguns setores econômicos, outros R$ 15 bilhões são provenientes do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) e outros R$ 10 bilhões da redução das contribuições para a Previdência Social. para pequenos municípios.
“Temos de olhar para a despesa fiscal. São benefícios muitas vezes indevidos, espúrios. Porque é que se dá tanto valor à correção da despesa primária e não à correção da despesa fiscal?”, questionou o ministro na conversa com a imprensa.
Ao defender a política fiscal do governo, Haddad também argumentou que parte do aumento dos gastos no governo Lula foram medidas para corrigir a “composição contábil” do governo anterior, como o adiamento do pagamento de precatórios (dívidas da União já reconhecido judicialmente) e a compensação aos Estados pelos prejuízos decorrentes da redução do ICMS sobre os combustíveis em 2022.
“O superávit de 2022 [último ano do governo Bolsonaro] não foi consistente. Foi falso [falso]fruto de inadimplência, de privatizações precipitadas, de dividendos extraordinários, de maquiagem contábil”, criticou.
Questionado sobre a necessidade de mais medidas de contenção de despesas em 2025, o ministro afirmou que a revisão dos gastos será uma constante no governo, mas não detalhou o que está no radar para o próximo ano.
Haddad também não quis falar em meta para o dólar, mas disse que cabe ao Banco Central agir para evitar disfunções. A autoridade monetária injetou quase US$ 17 bilhões no mercado à vista, durante dez dias em dezembro, para tentar conter a alta da moeda.
O ministro reconheceu que a moeda americana ganhou força no mundo, mas se valorizou com mais intensidade no Brasil, refletindo fatores internos.
“Temos que corrigir aqui esse ‘deslize’ do dólar. Não no sentido de buscar um nível de dólar, de almejar uma meta. O patamar em que o BC deve atuar é buscar o equilíbrio”, disse ainda.
Analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a crise fiscal de hoje não reflete apenas decisões do atual governo e também aponta a responsabilidade de outros Poderes.
O Judiciário foi solicitado a reduzir supersalários, com valores acima do teto do serviço público (R$ 44 mil), mas as categorias resistem às mudanças.
E o Congresso Nacional, pressionado por lobbies setoriais, resiste ao corte de benefícios fiscais, ao mesmo tempo em que trabalha para aumentar cada vez mais o valor das emendas parlamentares (recursos que deputados e senadores podem direcionar para obras e programas em seus redutos eleitorais).
“Para o Congresso, o problema [fiscal] nem existe porque o problema do Congresso está resolvido. E qual é o problema do Congresso? É ter fundo partidário, fundo eleitoral e emenda orçamentária”, afirma Creomar de Souza.
“Há uma desordem institucional que está criando uma situação muito desfavorável ao governo Lula”, acrescenta.
Os impactos para 2026
Apesar de apontar um cenário difícil para o governo, Souza diz que isso ainda não “muda o prognóstico da reeleição, porque Lula é um fenômeno diferente no governo Lula”.
Para Marconi, o que será mais importante para a força eleitoral de Lula serão os índices de desemprego e de inflação. Suas chances de reeleição, enfatiza, dependerão de como a alta do dólar e dos juros impactará esses dois fatores que impactam mais diretamente a vida das pessoas.
No momento, o Banco Central eleva fortemente a taxa básica de juros (Selic), para colocar a inflação, atualmente acumulada em 4,87%, dentro da meta —atualmente em 3% ao ano, com intervalo de tolerância de até 4,5%. .
A Selic atingiu 12,25% no início de dezembro, e deve chegar a 14,25% em março, segundo sinalização do Banco Central.
Para Marconi, a atual meta de inflação é muito baixa e acaba obrigando o BC a aumentar demais os juros. Ele destaca que isso também é um problema de política fiscal, já que parte da dívida pública está vinculada à Selic.
“O governo tem uma meta de inflação inatingível. O BC cobra juros altos para tentar atingir essa meta e isso inibe a atividade econômica. política”, critica.
“E aí esse aumento dos gastos públicos pressiona a dívida. E o próprio aumento das taxas de juros também pressiona os gastos com juros da dívida. O mercado financeiro olha para isso e pensa: ‘bom, a dívida vai subir, o risco vai subir’. O resultado é que começa o movimento da moeda no exterior e o dólar sobe”, continua.
Marconi não é o único que critica essa dinâmica, mas a mudança na meta não é consenso entre os economistas.
Questionado por jornalistas na semana passada, Haddad afirmou que o governo não tem intenção de alterar a meta de inflação no momento.
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