Uma barreira geográfica quase intransponível separava a sede da capitania de São Vicente, fundada em 1534 pelos portugueses no atual litoral de São Paulo, e a vila de São Paulo de Piratiningavila criada por religiosos jesuítas em 25 de janeiro de 1554 no coração da atual cidade de São Paulo.
A Serra do Mar, há quase 500 anos, era um obstáculo que desanimava os olhares europeus.
O arquiteto e historiador Benedito Lima de Toledo (1934-2019), professor da Universidade de São Paulo (USP), um dos maiores especialistas da história de São Paulo, perseguiu obstinadamente, com facões, bússolas e antiveneno (contra picadas de cobras), os rastros de o caminho usado pelos fundadores da atual maior metrópole da América do Sul.
Agora, cinco anos após sua morte, as descobertas e aventuras do professor estão reunidas no recém-lançado livro póstumo Os Caminhos do Mar.
“O texto do livro foi escrito desde a década de 1990 e sempre foi atualizado com notas e acréscimos observados por Benedito ao longo desse tempo”, diz o editor da obra, Marcello de Oliveira, à BBC News Brasil.
Viúva do arquiteto, a bibliotecária Suzana Alessio de Toledo lembra à BBC News Brasil que “os caminhos do mar sempre foram a paixão de Benedito”.
Nas décadas de 1960 e 1970 empreendeu, acompanhado por alunos de USPdezenas de expedições através Mata Atlântica em busca de vestígios do percurso utilizado pelo Padre José de Anchieta (1534-1597), seus companheiros de missão e todos que precisaram se deslocar do litoral ao planalto paulista nas primeiras décadas do Colonização portuguesa.
“Era uma das piores estradas do mundo”, dizia Toledo sempre que o assunto surgia.
“Havia trechos onde era preciso rastejar, tamanha a dificuldade devido à trilha estreita e à mata densa”, comentou certa vez a este repórter, há cerca de 15 anos.
Padre jesuíta Hoje considerado santo, Anchieta foi enviado ao Brasil dentro do projeto da Igreja Católica de catequizar os povos indígenas.
Nascido na ilha espanhola de Tenerife, aprendeu tupi e até escreveu a primeira gramática da língua nativa.
Depois de alguns meses em Salvadorfoi enviado à então capitania de São Vicente com a missão de fundar uma escola, no planalto paulista, para a evangelização dos cariocas.
Em 25 de janeiro de 1554, ele e outros jesuítas celebraram a missa que inaugurou esse projeto — evento considerado um marco na fundação da atual cidade de São Paulo.
Caminho do Padre José: uma das ‘piores estradas do mundo’
Na obra póstuma, Toledo explica que, quando os jesuítas chegaram ao litoral, primeiro seguiram uma trilha usada pelos indígenas para chegar ao planalto de Piratiningaonde hoje fica São Paulo. A trilha margeava o rio Mogi e foi utilizada pelos jesuítas no caminho da fundação da cidade.
“[…] Mas a proximidade de tribos hostis os levou a pensar em uma forma de abrir uma nova trilha, longe daquele rio”, relata.
Foi então que escolheram o Vale do Perequê e o padre José de Anchieta, ainda “muito jovem”, comandou a abertura da nova trilha, por volta de 1560.
No início da década de 1970, Toledo conseguiu reconstruir parcialmente o percurso, que chamou de Caminho do Padre José. Ele se baseou em antigos relatórios e cartas do próprio jesuíta.
“A trilha só permitia a passagem em fila indiana, com cargas carregadas nos ombros dos indígenas. Os doentes eram carregados em redes, pelos mesmos transportadores. O caminho era considerado um dos ‘piores do mundo’, por onde as pessoas subiam’ agarrando-se às raízes das árvores’, nas palavras de um cronista da época”, escreveu Toledo sobre o percurso.
O engenheiro e urbanista Adolfo Augusto Pinto (1856-1930), em seu livro História das Vias Públicasafirma que esta foi “a primeira estrada regular que o homem civilizado (sic) abriu na capitania de São Vicente, hoje estado de São Paulo”.
No livro recém-lançado, Toledo admite que “há poucos indícios do percurso exato da trilha”. Contudo, com base em algumas referências, foi possível “reconstruir o traçado aproximado deste caminho”.
O arquiteto Alexandre Luiz Rocha, um dos ex-alunos de Toledo, participou de algumas expedições e é autor do posfácio do livro.
Afirma que o traçado original do caminho está provavelmente “irremediavelmente perdido naquelas encostas tomadas pela vegetação e tantas vezes banhadas por chuvas intensas”.
“Mesmo assim, [foram] várias tentativas [do arquiteto e seus alunos] para marcar o Caminho do Padre José”, diz Rocha.
O padre jesuíta Fernão Cardim (1540-1625) escreveu, em 1585, sobre as extremas dificuldades do percurso: “[O caminho era] o pior que já vi e estávamos sempre subindo e descendo montanhas muito altas e passando por rios e riachos de águas muito frias”.
Calçada do Lorena: ‘a melhor estrada do Brasil’ na época
Além disso, porque uma descoberta levou a outra, Benedito Lima de Toledo encontrou vestígios que lhe permitiram reconstruir integralmente a Calçada do Lorena — primeira via pavimentada que ligava São Paulo a Santos, construída entre 1790 e 1792 a mando do então governador -general da capitania. , Bernardo José de Lorena (1756-1818).
A obra foi dirigida pelo engenheiro João da Costa Ferreira (1750-1822), da Real Academia Militar de Lisboa. Tinha 50 km de extensão e é considerada uma das maiores obras de engenharia do Brasil colonial.
Por ter sido o primeiro percurso a permitir a difícil viagem no dorso de mulas, o acesso ao planalto paulista tornou-se mais fácil, sendo necessários apenas dois dias de viagem.
Na famosa viagem em que D. Pedro 1º (1798-1834) proclamou a Independência, ele e a sua comitiva utilizaram esta estrada.
Com traçado em zigue-zague e calçada em pedra, a Calçada do Lorena é classificada por Alexandre Luiz Rocha como “a melhor estrada do Brasil naquela época”.
“Pouquíssimos foram vistos assim na Europa, segundo depoimentos de viajantes”, afirma o arquiteto.
No livro, Toledo afirma que esse trajeto marcou “o início da construção de uma infraestrutura destinada a colocar São Paulo no comércio internacional”.
Numa carta da época, o monge e historiador beneditino Gaspar Teixeira de Azevedo (1715-1800), mais conhecido como Frei Gaspar da Madre de Deus, descreveu o caminho como “uma espaçosa encosta pavimentada com pedras, que se sobe com pouco cansaço e desça com segurança.”
Toledo destacou que, em plena Serra do Mar, com muita pluviosidade e presença de vários riachos, foi um “feito surpreendente” dos criadores da Calçada do Lorena não ter atravessado um curso de água “nem uma vez”.
Mas, com a inauguração, em 1844, da Estrada da Maioridade, que também ligava São Paulo ao litoral, a Calçada do Lorena foi ficando gradativamente para trás — chegando ao abandono total na década de 1960.
Nevoeiro e dificuldades nas expedições
No livro, Toledo conta que, ao procurar os restos da Calçada do Lorena, muitas vezes apareciam fortes nevoeiros e chuvas repentinas, interrompendo os trabalhos.
Em uma delas, o grupo se perdeu por causa da neblina, segundo Alexandre Luiz Rocha, que estava na expedição e classifica a situação como “asfixia”.
Suzana guarda muitas lembranças desse período. Ela conta que o marido convidou para expedições alguns de seus alunos — que mais tarde se tornariam grandes amigos — além de um lenhador que conhecia a região. Em alguns períodos, a frequência das expedições era semanal.
“Eles enfrentaram o caminho cheio de mato denso. Saíram cedo, levando equipamentos como facão, antídoto, espelho refletivo para caso se perdessem e, claro, um bom lanche”, conta.
“Certa vez, observaram uma grande sombra em uma árvore. Para surpresa de todos, era uma preguiça enorme, impassível, observando o grupo presente. Foi um fato hilário”, conta Suzana, repetindo uma das histórias que Toledo gostava de contar.
Essa pesquisa acabou resultando na tese de doutorado de Toledo, defendida na USP em 1973. Na pesquisa, ele analisou o trabalho de engenheiros da Real Academia Militar de São Paulo.
Legado
Para Marcello de Oliveira, a “jóia da coroa” da obra de Benedito Lima de Toledo foi ter resultado no registro e no interesse pela preservação dos monumentos históricos da Serra do Mar — que o editor classifica como “um dos mais importantes conjuntos arquitetônicos do Estado de São Paulo”.
Em matéria do jornal O Estado de S. Paulo em 2002, Toledo denunciou a situação do monumento Cruzeiro Quinhentista, em Cubatão, construído em 1922.
Para comemorar o primeiro centenário da Independência do Brasil, o governo de São Paulo contratou o arquiteto Victor Dubugras (1868-1933) para criar oito monumentos ao longo do chamado Caminho do Mar, Estrada Velha de Santos.
Os azulejos originais foram obra do artista plástico Wasth Rodrigues (1891-1957) — Toledo também localizou e fez levantamento técnico de todos eles.
“O monumento marca o ponto de convergência dos antigos caminhos que desciam a serra. A cruz recebeu ‘restauros’ desastrosos. Num deles os azulejos originais foram partidos e substituídos por ‘novos'”, escreveu Toledo no jornal.
O arquiteto e historiador conta que passando por ali, em uma de suas expedições, conseguiu “resgatar, em meio aos escombros, um fragmento retratando, justamente, o rosto do Padre Anchieta”.
Oliveira afirma que, sem o trabalho do professor, “não teríamos registro dos painéis de azulejos originais de Wasth Rodrigues”.
O pesquisador e YouTuber Paulo Rezzutti destaca a importância do trabalho de Toledo para São Paulo.
“Ele misturou arquitetura com história e arqueologia e, como um Indiana Jones paulista, localizou as rotas dos primeiros colonizadores brancos do litoral ao planalto paulista”, destaca.
O historiador Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista da USP, destaca a importância do livro recém-lançado como documento que registra as expedições do professor Toledo, com imagens originais do percurso e fotografias da época.
“É um trabalho de divulgação baseado em pesquisas acadêmicas de muitos anos”, diz Marins.
Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez afirma à BBC News Brasil que o material do livro recém-lançado “é altamente simbólico, emblemático e representativo”.
“A relevância cultural do livro vai ao encontro das preocupações que desde a década de 1920 animaram a busca e a construção da identidade histórica e nacional através da memória política, quase familiar, dos magnatas paulistas do café, do comércio e das finanças. , ele diz.
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