Carter, que governou os Estados Unidos entre 1977 e 1981, deixa um legado que transcende a política. Sua atuação foi marcada pelo diálogo diplomático, pelo compromisso com os direitos humanos e por uma trajetória humanitária ímpar. Mais do que um ex-presidente, Carter estabeleceu-se como um símbolo global de liderança ética e de serviço aos outros.
Nascido em 1º de outubro de 1924, em Plains, Geórgia, James Earl Carter Jr. cresceu em uma comunidade rural, ajudando sua família nos campos de amendoim. A rotina simples e os valores aprendidos com os pais moldaram um jovem disciplinado e determinado. Formou-se na Academia Naval dos Estados Unidos e serviu na Marinha dos Estados Unidos, onde desenvolveu liderança e resiliência.
Em 1971, Carter assumiu o cargo de governador da Geórgia e ganhou atenção nacional ao implementar políticas progressistas, nomeadamente iniciativas de integração racial e reformas educativas. Sua postura firme e transparente o projetou no cenário político americano. No meio de uma crise de confiança na política americana após o escândalo Watergate, Carter foi eleito presidente em 1976 com uma mensagem clara: “Nunca mentirei para você”.
Apesar das conquistas diplomáticas, a sua administração enfrentou crises graves. A crise dos reféns no Irão (1979-1981), que manteve 52 diplomatas americanos como reféns durante 444 dias, minou a sua popularidade. A crise energética e o aumento da inflação prejudicaram a sua imagem, levando à derrota de Ronald Reagan nas eleições de 1980.
Relacionamento com o Brasil
Na Casa Branca, Carter adoptou uma abordagem inovadora e corajosa nas relações externas dos Estados Unidos, colocando os direitos humanos no centro da sua política externa. Essa postura teve impactos diretos no Brasil e em outros países latino-americanos, então sob regimes autoritários. Os contatos com o Brasil ocorreram durante a ditadura militar (1964-1985). Ele foi o responsável por exigir que o governo brasileiro adotasse práticas mais transparentes e respeitosas aos direitos fundamentais.
Em 1977, durante visita de representantes brasileiros a Washington, Carter deixou claro que os Estados Unidos não tolerariam mais abusos sistemáticos dos direitos humanos. Essa mensagem repercutiu no governo militar brasileiro, gerando desconforto, mas também abrindo espaço para um diálogo mais franco sobre a transição democrática. A política externa de Carter fortaleceu os movimentos internos no Brasil que buscavam a redemocratização, dando legitimidade internacional às vozes que clamavam por mais liberdade e justiça.
Carter negociou diretamente o acordo assinado em 1977, o Tratado Torrijos-Carter, que transferiu gradualmente o controle do canal para o Panamá, simbolizando um compromisso genuíno com a autodeterminação dos povos latino-americanos. Este ato reforçou a confiança entre os países da região e melhorou significativamente a imagem dos Estados Unidos no hemisfério sul.
Em Brasília
Em 29 de março de 1978, durante a visita oficial do então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, ao Brasil, estudantes da Universidade de Brasília (UnB) organizaram um evento público marcado por críticas à política externa americana e à repressão promovida por o regime militar. Brasileiro. Na reportagem, publicada pelo Correio Braziliense, os estudantes encenaram a peça “A Força do Capitão no Reino da Repressão” e aprovaram uma moção de repúdio à visita de Carter devido ao apoio histórico dos Estados Unidos às ditaduras na América Latina.
A morte de Carter foi lamentada pelos líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, divulgou uma declaração oficial: “Para qualquer pessoa que esteja procurando o que significa viver uma vida com propósito e significado – a vida boa – estude Jimmy Carter, um homem de princípios, fé e humildade”.
Eleito, o futuro presidente americano Donald Trump, reconheceu a contribuição de Carter ao país, afirmando que os americanos têm “uma dívida de gratidão” para com o democrata. “Os desafios que Jimmy enfrentou como presidente surgiram num momento crucial para o nosso país e ele fez tudo o que estava ao seu alcance para melhorar a vida de todos os americanos.”
O ex-presidente George W. Bush destacou a dedicação de Carter ao serviço público. O casal Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, e Hillary Clinton, ex-secretária de Estado, destacaram a amplitude das conquistas de Carter ao longo de sua vida pública e pós-presidencial.
O líder egípcio Abdel Fattah Al-Sisi prestou homenagem ao papel histórico de Carter na assinatura dos Acordos de Camp David, que estabeleceram a paz entre o Egipto e Israel: “O seu legado duradouro garante que ele será lembrado como um dos líderes mais proeminentes do mundo. serviço da humanidade.” Chip Carter, filho do ex-presidente, também compartilhou suas emoções em um comunicado: “Meu pai foi um herói, não só para mim, mas para todos que acreditam na paz, nos direitos humanos e no amor altruísta”, disse ele.
Legado de ações políticas e humanitárias
Em 2002, o ex-presidente Jimmy Carter recebeu o Prémio Nobel da Paz em reconhecimento dos seus esforços para encontrar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Foi mediador em diversas situações de tensão política, como negociações de paz no Médio Oriente e na Coreia do Norte, utilizando a sua influência para promover a diplomacia e a resolução pacífica de litígios.
Carter enfrentou crises económicas e diplomáticas, como a Revolução Islâmica no Irão e a invasão do Afeganistão pela União Soviética. Mas destacou-se ainda mais pelo seu trabalho humanitário, defendendo os direitos humanos e mediando conflitos, incluindo o Acordo de Camp David entre o Egipto e Israel.
Para especialistas, o norte-americano se pautou pela ética, retidão e integridade, marcas que deixou por onde passou. Sempre sensível, o ex-presidente criou o Carter Center. Por meio da fundação, promoveu campanhas para erradicar doenças negligenciadas, como a oncocercose (cegueira causada por picadas de insetos) e a filariose linfática, popularmente conhecida como elefantíase.
Carter também estava empenhado no combate a doenças, como a dracunculíase (verme da Guiné) e na supervisão de eleições nos países em desenvolvimento.
Não satisfeitos em promover a acção global, o antigo presidente e a sua esposa, Rosalynn, foram voluntários activos na Habitat for Humanity. A organização constrói e reforma casas para famílias de baixa renda. (VO e RG)
A simplicidade de um democrata e pacifista
Diplomatas e políticos lamentaram a morte de Jmmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos, aos 100 anos. Para os negociadores habituados à coordenação internacional, ele será lembrado pelas suas qualidades de estadista, como a defesa da democracia e da paz. Lembraram que, no comando da Casa Branca de 1977 a 1981, foi um grande crítico das ditaduras latino-americanas, incluindo a do Brasil.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou as redes sociais para se manifestar. “Acima de tudo, (ele era) um amante da democracia e defensor da paz.” “No final da década de 1970, ele pressionou a ditadura brasileira pela libertação dos presos políticos. Depois, como ex-presidente, continuou a fazer campanha pela promoção dos direitos humanos, da paz e da erradicação de doenças em África e na América Latina”, escreveu.
“Carter conseguiu a proeza de ter um cargo como ex-presidente, ao longo de décadas, tão ou mais importante que o seu mandato na Casa Branca, criticando as ações militares unilaterais das superpotências e o uso de drones assassinos”, afirmou. Lula lembrou ainda que o norte-americano trabalhou ao lado de representantes brasileiros na mediação de conflitos na Venezuela e na ajuda ao Haiti.
Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro das Finanças e do Meio Ambiente, destacou que Carter introduziu a questão dos direitos humanos no centro da agenda política internacional. Segundo ele, o ex-presidente nunca perdeu a simplicidade, participando da catequese na Igreja Batista.
“Ele colocou a União Soviética na defensiva, abrindo caminho para os acordos de Helsínquia, cujas implicações a médio prazo levaram gradualmente ao regresso da democracia aos antigos países comunistas. Carter aplicou pressão efetiva contra as ditaduras latino-americanas da década de 1970”, afirmou, em entrevista ao Correio.
Para Ricupero, Carter deixou um legado extenso, especialmente o acordo de paz entre Egito e Israel, o principal até hoje no Oriente Médio. Além disso, o diplomata destacou o acordo para devolver o Canal ao Panamá, “agora ameaçado pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump”; e a adoção de uma postura de aceitação das mudanças na América Central, como a queda da ditadura de Anastasio Somoza na Nicarágua.
“Ao deixar a presidência, Carter realizou um trabalho incansável na promoção da paz, de eleições limpas e democráticas e dos direitos humanos, o que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz e a descrição como o ‘melhor ex-presidente dos Estados Unidos’”, destacou Ricupero. “Por todas estas razões sempre foi respeitado por unanimidade pelos cidadãos norte-americanos.”
O ex-embaixador brasileiro em Washington e CEO do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, reiterou a simplicidade de Carter, que assinou o acordo de Camp David que previa a paz entre Egito e Israel. “Ele era um defensor dos direitos humanos, muito crítico do governo Ernesto Geisel nesse assunto. Após a presidência, trabalhou no Carter Center em defesa da democracia, dos direitos humanos e da transparência das eleições, inclusive nos países sul-americanos”, disse Barbosa ao Correio.
O ex-governador e ex-senador Cristovam Buarque disse que conheceu Carter em um jantar na embaixada dos EUA em Brasília. “Lembramos da carta enviada a ele por estudantes da UnB, denunciando a violência da ditadura, emoldurada na parede do Carter Center, em Atlanta. Jimmy Carter foi um raro estadista que seguiu a ética antes da política”, disse ele.
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