Atenção: Este artigo revela alguns trechos da trama do filme.
Emília Pérez triunfou neste domingo (01/05) em 82ª edição do Globo de Ouro.
O filme chegou para o evento como o longa com mais indicações e, além de ganhar o prêmio de melhor filme musical ou comédia, também venceu na categoria filme em língua não inglesa.
A americana de origem dominicana Zoe Saldaña ganhou a estatueta de melhor atriz coadjuvante por sua atuação como uma advogada que concorda em ajudar um traficante mexicano a passar por uma operação de redesignação sexual para começar uma nova vida como mulher.
Dirigido pelo francês Jacques Audiard, Emília Pérez estreou em maio de 2024 no Festival de Cinema de Cannes, onde ganhou o Prêmio do Júri e na categoria melhor atriz para o elenco feminino. Com isso, Karla Sofía Gascón se tornou a primeira mulher trans a ganhar este prêmio.
E espera-se que o seu sucesso internacional repercuta em todo o mundo. Indicações ao Oscarque será anunciado no dia 17 de janeiro.
O México, no entanto, o país onde a trama de Emília Pérezé o local onde talvez o filme tenha acumulado mais críticas negativas.
E tudo isso sem sequer ter sido lançado oficialmente nos cinemas ou nas plataformas do país, como aconteceu no resto do mundo.
“Ironicamente, o país sobre o qual o filme trata será o último a chegar”, disse a crítica de cinema mexicana Gaby Meza à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Seus diálogos estranhos
Os comentários negativos sobre o filme que teve maior impacto no México foram os do ator e produtor mexicano Eugenio Derbez.
Em entrevista a Gaby Meza há algumas semanas, ele destacou, por exemplo, que os diálogos entre os personagens soam estranhos aos mexicanos.
O ator destacou principalmente o sotaque de Selena Gomez, que é americana de ascendência mexicana, mas não fala espanhol.
Para Derbez, o problema é que se trata de uma produção feita por estrangeiros e que está sendo muito bem recebida pelo público que não fala espanhol, que pode não entender as nuances da fala mexicana.
No caso de Selena Gomez em particular, desde os primeiros diálogos do filme é possível perceber rapidamente que o espanhol não é a primeira língua da personagem, que é uma mulher americana.
De qualquer forma, para Derbez a interpretação da estrela pop “é indefensável”: “Eu estava assistindo com pessoas que se entreolhavam e diziam: ‘Uau, o que é isso?’”
“Acho que lhe deram um prêmio em Cannes e nos Estados Unidos não falam sobre esse aspecto porque não falam espanhol e não entenderam isso”.
O comentário viralizou e o ator e produtor mexicano recebeu uma avalanche de críticas.
A própria Selena Gomez respondeu dizendo que entendeu as críticas e garantiu que sua pronúncia foi a melhor que pôde com o pouco tempo que teve para se preparar.
“Isso não diminui quanto trabalho e coração foram investidos neste filme”, disse ela.
Pouco depois, Derbez pediu desculpas pelas suas palavras: “Peço verdadeiramente desculpas pelos meus comentários imprudentes. Eles são indefensáveis e vão contra tudo o que defendo”, escreveu ele.
A diretora de elenco do filme, Carla Hool, explicou que alertou o diretor Jacques Audiard sobre os sotaques de Selena Gomez e Zoe Saldaña e incluiu no roteiro que os dois personagens que interpretam não são mexicanos.
Gaby Meza destaca que, justamente, uma primeira fonte de críticas ao filme no México foram os clipes que circularam na internet e que mostram o sotaque e a pronúncia dos protagonistas.
“O que chega a muita gente são memes ou clipes com sotaque e voz espanhola, diálogos que não são mexicanos”, diz Meza.
“Mas o que Eugenio Derbez disse faz muito sentido, porque se você é estrangeiro em uma língua, não consegue entender as nuances de uma interpretação”, destaca.
“Se eu assistir a um filme japonês, pode parecer uma boa atuação, mas não consigo entender a intenção das palavras, se a entonação está correta ou não, nem as nuances, porque não falo essa língua”, disse ele. acrescenta.
Do México… sem mexicanos
Outra das maiores críticas ao filme no México foi em relação ao elenco.
Das personagens principais, apenas uma, Epifania Flores, é interpretada pela atriz mexicana, Adriana Paz.
Em entrevistas, o diretor de elenco indicou que as primeiras audições foram realizadas no México e que a seleção foi posteriormente aberta a outros países da América Latina, à Espanha e aos Estados Unidos.
Segundo ele, no final Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez foram as que mais se adequaram aos papéis principais.
“Audiard olhava para todos da mesma forma. Ele não estava dizendo que queria uma atriz famosa. Ele só queria a melhor atriz para o papel. E acabou sendo Selena e Zoe”, disse Hool.
O fato da diretora de elenco ter dito que não conseguiu encontrar atrizes no México para os papéis principais também foi motivo de críticas.
A atriz Karla Sofía Gascón, por sua vez, saiu em defesa de seu trabalho e do filme em uma postagem no X, e o fato de ter descrito os críticos do filme como “quatro gatos” (algo como “meia dúzia de gatos pingando”) provocou ainda mais ataques.
Quero agradecer a todo o México e aos mexicanos, sei perfeitamente que todo esse ódio injustificado não vem de nós, são simplesmente quatro gatos com muita gente e interesses variados entretanto. É ruim, vou tentar fazer a inauguração com as salas lotadas e… pic.twitter.com/OhtsJnjAUB
— Karla Sofía Gascón (@karsiagascon) 18 de dezembro de 2024
“Cada declaração do elenco e da equipe de Emília Pérez é mais ofensivo que o anterior e revela descaradamente a forma depreciativa e desdenhosa como as pessoas pensam sobre o México”, escreveu o usuário Luis Ruiz na rede social X.
Para Gaby Meza, esse é mais um ponto que faz o filme gerar “resistência” no México.
Mas, para ela, tanto o sotaque das atrizes, como o roteiro ou a ausência de atrizes mexicanas são problemas menos importantes do que a forma como o filme apresenta a realidade da violência das drogas e dos desaparecidos no México.
‘Insensível’
Na trama, a mudança de gênero de Emilia Pérez é acompanhada por uma transformação de consciência: a ex-chefe do mundo violento do tráfico de drogas cria uma organização para encontrar pessoas desaparecidas no México.
A forma como o tema é abordado gerou múltiplas críticas no México, por se tratar de um tema muito delicado em um país com mais de 100 mil desaparecidos, segundo dados oficiais.
“Supor que, ao fazer sua transição, o homem selvagem e cruel que ordenou centenas de assassinatos de repente se transforma em uma mulher empática e comprometida com os mais fracos é um malabarismo narrativo imperdoável”, disse o escritor mexicano Jorge Volpi em coluna de opinião no jornal El País.
“No final, a redenção de Emilia Pérez acaba sendo tão falsa – e tão desrespeitosa com o espectador – quanto o sotaque de Selena Gomez ou a falsa determinação de Audiard em abordar, sem o menor conhecimento ou empatia, o doloroso tema dos desaparecidos no México”, ele acrescentou.
Questionado, o diretor do filme reconheceu que não investigou muito a realidade dessa questão no México.
“O que eu tinha que entender, eu já sabia um pouco”, disse ele em declarações que apenas colocaram lenha na fogueira.
Para Gaby Meza, o filme é visto pelos mexicanos como “uma exploração de uma tragédia atual no México, o tráfico de drogas e os desaparecidos devido à violência, para gerar um produto de entretenimento”.
“E dá até para pensar que existem muitas séries sobre tráfico de drogas que se apropriam de temas da cultura das drogas para contar histórias”, reflete Meza.
“A diferença aqui tem a ver com a forma como os elementos se combinam: um diretor francês que disse não ter estudado o México porque o que sabia era o que precisava saber; uma diretora de elenco que diz ter procurado gente no México, na América Latina e nos EUA, mas no final as atrizes selecionadas foram as melhores opções, numa tentativa de empatia com as vítimas dos desaparecimentos, sugerindo que o vilão se arrepende e tudo ficará bem”, acrescenta.
Apesar de tudo isto, Meza considera valioso que um realizador tenha dado uma abordagem inovadora a um tema complexo como o tráfico de drogas e a violência, especialmente no caso de um musical.
“É muito importante que cada pessoa faça a sua leitura.”
“É muito válido que no México haja pessoas que gostem do filme, que achem que ele retratou bem [o país]o que não é insensível. E também é válido que haja quem diga o contrário, que não, que não representa o México.
“A maravilha do cinema é que cada pessoa pode interpretá-lo à sua maneira.”
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