Assim que entrou na sala de reuniões de um hotel em Chelsea, um grande bairro no sul de LondresRingo Starr recebeu informações rápidas sobre o jornalista que o aguardava para a entrevista.
Foi então que rapidamente arregacei a manga do meu pulôver para mostrar a tatuagem com as efígies do Beatles que carrego no braço esquerdo.
“Hmm, acho que não vou falar com você”, disse o baterista dos Beatles enquanto caía na gargalhada.
Em uma manhã fria de segunda-feira de dezembro, Ringo recebeu a BBC News Brasil para uma entrevista promovendo o lançamento, em poucas semanas, do Olhe para cimaseu 21º álbum solo de estúdio.
Dois dias antes me deram a missão de conduzir a conversa, mantendo absoluto sigilo. Mas logo depois de ficar 20 minutos cara a cara com Ringo, enviei uma mensagem de WhatsApp para Daniel Lins, músico e publicitário radicado na Flórida com quem há quase 40 anos formou a primeira de muitas bandas tributo (extintas e ativas) em Brasília aos quatro anos. gente cabeluda de Liverpool.
“Olha onde acabamos, meu amigo”, escrevi, acrescentando uma foto da entrevista feita pelo produtor Giovanni Bello, que documentou os bastidores.
Aos 84 anos, mas parecendo duas décadas mais jovem em “quilometragem”, Ringo não dá sinais de que pretende parar de trabalhar em estúdio e viver. Nos últimos cinco anos, ele lançou cinco álbuns “extended play” (formato curto, normalmente contendo de quatro a seis faixas).
Em Olhe para cimaFruto de uma parceria com o músico e produtor americano T-Bone Burnett, Ringo expressa mais uma vez sua paixão pela música country.
O seu caso de amor com o género remonta à adolescência numa Liverpool que na década de 1950 ainda se recuperava da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial, mas cujo então movimentado porto também ajudou a importar uma sucessão de sons dos EUA. E isso transpareceu em suas composições para os Beatles, incluindo as mais famosas, Jardim Polvo.
“Nós [os Beatles] Eu adorava música americana. Era 90% do que gostávamos de ouvir e tocar quando começamos”, explicou Ringo.
O baterista não tem um catálogo solo tão impactante quanto os outros três ex-companheiros de banda – John Lennon, Paul McCartney e George Harrison -, mas isso não significa que ele deixou de “sujar as mãos” após o fim do grupo em 1971. Hoje, diferentemente da maioria dos senhores octogenários do mundo, ele continua sendo uma espécie de viciado em trabalho.
“Fazer música em estúdio e escrever com outros músicos é o que me move na vida e me mantém ocupado. Uma das coisas que mais gosto é tocar. E não consigo fazer isso sozinho com uma bateria”, explicou.
“Pelo menos não estamos mais na pandemia.”
Mas o impacto da Covid-19 deixou Ringo ainda mais preocupado com germes e coisas do gênero. A aversão remonta aos longos períodos que passou internado quando criança devido à tuberculose.
O coronavírus interrompeu sua turnê de 2022 e a gripe cancelou shows no ano passado.
Os jornalistas são delicadamente instruídos pelos conselheiros do Beatle a cumprimentá-lo “batendo os cotovelos”.
Mas a conversa com Ringo não poderia ter sido diferente do meu único encontro anterior com um dos “Liverpool Four” – uma conferência de imprensa com Paul McCartney em 2009, na qual questões e tópicos foram previamente acordados e um seleto grupo foi escolhido para endereço “Macca”.
Tirando um pedido quase caro da Universal para não esquecermos de falar sobre Olhe para cimanão houve restrição às inevitáveis questões relacionadas ao passado do baterista.
Uma questão que sempre me interessou foi como ele lidou com a decisão dos Beatles de não se apresentarem mais ao vivo, tomada em 1966 – e que só foi quebrada uma vez no famoso Rooftop Concert, na cobertura de um prédio no centro de Londres, três anos depois. mais tarde.
Os então quatro jovens de Liverpool finalmente se cansaram da combinação letal para a saúde mental formada por torcedores gritando, agendas de shows lotadas e falta de equipamento de som adequado para apresentações em grandes arenas, como estádios.
Além disso, a complexidade sonora do trabalho do quarteto em estúdio desde o álbum Revolver (1966) impossibilitou a reprodução adequada do material ao vivo.
Consequentemente, músicas emblemáticas como Campos de Morangos para Sempre, Penny Lane e Aí vem o solpara citar apenas alguns, nunca foram tocados ao vivo pelo grupo.
“É um tanto frustrante nunca termos tocado essas músicas ao vivo”, admitiu Ringo.
“Mas [parar de se apresentar] Foi uma decisão que tivemos que tomar.”
O baterista se refere especificamente ao desafio de manter o ritmo de apresentações em que não conseguia ouvir os demais Beatles no palco.
“A adoração dos fãs foi ótima, mas na maioria das vezes eu tive que observar as costas de John, Paul e George para saber onde estávamos na música.”
“Não conseguimos ouvir nada por causa da gritaria.”
Os fãs dos Beatles podem até ouvir algumas dessas músicas nos shows solo de Paul e Ringo, que continuam em turnê.
Ringo inclusive já esteve três vezes no Brasil, a última vez em 2015. Se ainda não há novidades sobre uma nova visita, o baterista pelo menos guarda boas lembranças – seja dos shows ou da interação com os fãs brasileiros.
“Eu adorei o Brasil. O público se levanta e dança. O brasileiro vem ao show para se divertir, não para sentar e ouvir. No meu site tem sempre alguém pedindo ‘vem para o Brasil!'”, disse ele, com mais uma risada.
Uma prova do legado duradouro dos Beatles é a existência de uma infinidade de bandas de tributo, que vão desde imitadores profissionais até artistas de fim de semana se apresentando no bar da esquina.
A banda é tema de festivais famosos como o Abbey Road on The River, realizado nos EUA, ou o International Beatleweek, que há quase 40 anos reúne periodicamente em Liverpool grupos de todo o mundo, do Brasil à Indonésia, passando pelo Uzbequistão. e Japão.
Tais grupos não são raros formados por músicos nascidos muito depois de John, Paul, George e Ringo terem seguido o seu próprio caminho em 1970.
“Adoro a ideia de que geração após geração ouve nossa música. Temos bilhões de reproduções em serviços de streaming. transmissão e isso tudo é muito louco. Eu adoro isso porque ainda somos parte de algo em vez de estarmos em um armário.”
O que as gerações mais jovens também parecem fazer é apreciar os atributos musicais de Starr. Nas redes sociais, não é incomum encontrar vídeos celebrando a “característica” de um baterista que, por não exibir o virtuosismo de outros contemporâneos, teve sua técnica por vezes esquecida.
Não que tal redenção pareça ser algo importante para Ringo.
“Eu apenas faço meu trabalho”, diz Starr.
“Acho que o que ajudou foram as remasterizações dos discos dos Beatles, que destacaram mais o som da bateria. Sou apenas um músico que não quer tocar sozinho”, disse ele, sorrindo.
Talvez seja apenas a sabedoria adquirida por aqueles que nasceram e viveram tempos turbulentos que incluíram o assassinato de John Lennon em 1980 e a morte de George Harrison por câncer em 2001.
O baterista também enfrentou o alcoolismo e o vício em drogas, que deixou para trás na década de 90 – o que finalmente deu um toque de verdade aos seus versos. Não, não, músicaa canção de 1974 em que Ringo afirma humoristicamente ter “disse não” a várias substâncias legais e ilícitas.
(No brasil, Não, não, música ganhou uma versão em português ainda mais hilariante de Raul Seixas.)
Antes de sair da sala e mais uma vez tocar os cotovelos, perguntei a Ringo se ele tinha alguma dica para quem está no fundo de um poço.
A resposta veio sem pretensão, assim como as batidas de sua bateria.
“É uma pergunta difícil porque não sei o que as pessoas passaram. Mas é preciso ser honesto e aceitar que alguns dias serão ruins. No meu caso, fico feliz quando estou batendo os tambores”, ele concluiu.
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