Não foi uma surpresa para a brasileira Alice*, mas isso não significa que ela esteja menos preocupada: no primeiro dia do governo Donald Trump, em 20 de janeiro, o presidente dos Estados Unidos assinou um ordem executiva que retira o direito à cidadania americana de bebês nascidos em território americano que sejam filhos de imigrantes.
Esta foi uma das promessas de campanha do republicano, eleito com o seu discurso linha-dura contra os imigrantes e o seu plano de deportação em massa de milhões de indocumentados.
Este é o caso de Alice. Há quase 11 anos, ela saiu de Mato Grosso e atravessou a nado o Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, com o marido, em busca de uma nova vida.
Aos 35 anos e grávida de 7 meses, ela aguarda o nascimento da segunda filha em abril.
A primeira filha, hoje com 9 anos, nasceu na região de Boston, Massachusetts e possui passaporte brasileiro e americano.
Depois de anos iniciais difíceis, em que trabalhavam três empregos por dia, o casal diz que agora tem uma boa situação financeira no país.
Ela gerencia uma equipe de limpeza doméstica, ele é dono de uma construtora. A renda mensal da família chega a US$ 20 mil (cerca de R$ 120 mil). Eles têm casa própria e alguns terrenos nos Estados Unidos.
Bem estabelecido, o casal já desejava um segundo filho há algum tempo, e Alice sofreu um aborto espontâneo antes da gravidez atual.
A alegria pela chegada do novo membro da família, porém, agora divide espaço com a tensão, já que na condição atual o bebê não receberia a cidadania americana ao nascer.
“Acho que ele (Trump) voltou com muito mais ódio, basta olhar a quantidade de coisas que ele está fazendo contra os migrantes. Apenas uma pessoa com muito ódio para fazer tamanho mal”, diz Alice, em referência aos anúncios de Trump. de declaração de emergência na fronteira, para mobilizar o Exército contra a entrada de imigrantes e o fim das atuais políticas de solicitação de asilo, além da ordem executiva sobre o direito à cidadania por nascimento.
“No meu caso, já tenho uma filha americana e depois teria uma segunda filha que seria considerada uma imigrante ilegal. Isso não é justo e acredito que é ilegal e será revertido”.
Alice diz que já consultou três advogados sobre o assunto. Ela diz que nunca teve coragem de começar a regularizar sua situação imigratória por medo de acabar deportada no processo, mas afirma que pretende processar os Estados Unidos caso sua filha nasça sem o direito.
Legalmente, os imigrantes indocumentados têm direito ao devido processo antes de serem deportados — e também podem tomar medidas legais se se sentirem prejudicados em qualquer outra situação enquanto viverem no país.
“Se por acaso essa ordem executiva realmente for adiante, eu vou processar o Estado, vou processar o governo federal”, diz Alice.
“Não tenho medo disso, não, porque eu pago meus impostos, mesmo que eu seja ilegalFaço tudo o que precisa ser feito para estar seguro aqui no país. Vou até o fim pegar os documentos da minha filha”, diz Alice.
Ela reconhece que sua situação nos EUA é irregular e diz que sonha com o momento em que poderá pedir anistia e ser legalizada. Mas ela reafirma que não se sente uma criminosa, já que Trump frequentemente descreve os imigrantes indocumentados. Alice é evangélica e se descreve como uma pessoa ideologicamente de direita.
A decisão de Trump é constitucional?
As ordens executivas dos presidentes americanos não necessitam de aprovação no Congresso e entram em vigor a partir do momento em que são assinadas pelo mandatário.
Trump assinou mais de duzentos deles nas primeiras 24 horas no poder.
No caso da ordem executiva sobre cidadania, o texto determina que bebês nascidos nos Estados Unidos após 30 dias da assinatura do documento não serão mais considerados americanos de nascimento.
A medida visa filhos de imigrantes indocumentados (cerca de 11 milhões de pessoas) ou aqueles que possuem vistos temporários de trabalho, estudo ou turismo (outros 3 milhões de pessoas).
A revogação da cidadania de nascença é um desejo antigo de Trump que não foi implementado no seu primeiro mandato porque os seus então conselheiros não encontraram um caminho legal viável naquela altura. Mas em 2024, Trump fez da questão da migração um dos temas centrais da sua campanha, descrevendo um país “invadido” por estrangeiros e frequentemente descrevendo os migrantes como criminosos. “Eles envenenaram o sangue do nosso país”, disse Trump em mais de uma ocasião.
Os quatro anos do governo Biden foram marcados pela entrada irregular de milhões de pessoas pela fronteira com o México, o que custou popularidade ao governo democrata.
Alice não está sozinha em seu plano de processar o governo federal. Na verdade, 22 estados americanos já entraram com ações judiciais para contestar a constitucionalidade da lei.
Entre eles, Nova York, Califórnia e Massachusetts, onde mora a família de Alice.
Além deles, organizações da sociedade civil, como a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), e o Centro Brasileiro dos Trabalhadores Brasileiros também abriram ações.
O argumento central dos Estados, das ONG e de Alice é que a determinação de Trump colide com direitos muito claros estabelecidos pela Constituição.
Mais especificamente, a 14ª Emenda de 1868, que garante que “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem”.
A alteração foi feita para estender os mesmos direitos aos cidadãos negros e brancos, após a Guerra Civil no país.
Desde a sua criação, foi questionado algumas vezes na Justiça, e a jurisprudência estabelecida é que o nascimento em solo americano garante a cidadania ao filho nascido, independentemente da nacionalidade ou situação imigratória de seus pais.
“A grande promessa da nossa nação é que todos os nascidos aqui serão cidadãos dos Estados Unidos, capazes de realizar o sonho americano”, disse a procuradora-geral de Nova Iorque, Letitia James, argumentando que a ordem de Trump é inconstitucional.
Milhões de adultos sem cidadania?
Em sua ordem executiva, Trump argumenta que o termo “sujeito à sua jurisdição” exclui pessoas indocumentadas ou temporárias no país e que, portanto, seus descendentes não teriam direito à cidadania.
Segundo ele, a Constituição americana tem sido interpretada incorretamente há mais de 150 anos.
Os críticos da imigração argumentam que a interpretação actual da Carta funciona como um “enorme íman para a imigração ilegal” e que incentiva as mulheres grávidas sem documentos a atravessar a fronteira para dar à luz, um acto que tem sido pejorativamente chamado “turismo de nascimento” ou “ter um bebê âncora”.
A prática, no entanto, não se restringe aos imigrantes indocumentados. Nos últimos anos, os planos de viagem de gestantes para a Flórida se popularizaram entre a classe média alta brasileira, com visto de turista que garante permanência nos Estados Unidos por até seis meses.
Esses serviços oferecem aos pais não apenas a oportunidade de confeccionar o enxoval nas lojas do país, mas também de garantir o nascimento do bebê em um hospital americano, para que a criança retorne ao Brasil com passaporte dos Estados Unidos.
“Com esta ordem executiva, pelo menos por enquanto, esta indústria do turismo de nascimento é inviável”, disse a advogada Leda Almeida, CEO da AG Immigration, especializada em direito de imigração e radicada na Florida.
Para Sam Erman, professor de direito da Universidade de Michigan e autor de Quase cidadãos: Porto Rico, a Constituição e o Império dos EUA (“Quase cidadãos: Porto Rico, a Constituição dos EUA e o Império”, em tradução livre), o argumento de Trump e de seus apoiadores, neste caso, não é sustentável nem jurídica nem historicamente.
“Nesse contexto, a expressão jurídica ‘sujeito à sua jurisdição’ tinha um objetivo específico”, afirma Erman à BBC News Brasil.
“Excluir os filhos dos embaixadores, que estão parcialmente sujeitos às leis dos seus países, os filhos dos soldados de possíveis exércitos invasores, e os filhos dos nativos americanos, que estão principalmente sujeitos às leis das suas nações e não às dos Estados Unidos Estados.”
Segundo Erman, as ações movidas por Estados e organizações da sociedade civil deverão chegar ao Supremo Tribunal Federal, que terá a palavra final.
Isso, no entanto, pode levar mais de um ano. Entretanto, se nenhuma medida cautelar bloquear a ordem executiva, as autoridades federais de todo o país são oficialmente instruídas a deixar de fornecer documentos, como passaportes, a bebés que não tenham pelo menos um dos pais com direito a residência permanente ou cidadania americana. .
“Vai virar mais uma novela”, concorda Almeida, sobre a perspectiva de uma batalha judicial de meses de duração pela frente.
Na sua configuração atual, o Supremo tem maioria de seis a três membros a favor de posicionamentos considerados mais conservadores. Isto significaria, em princípio, uma vantagem para a tese de Trump.
Recentemente, o Tribunal reverteu uma decisão de mais de 50 anos que garantia o aborto legal em todo o país. O alinhamento dos juízes, porém, não é automático, principalmente em temas polêmicos.
“O que me preocupa é que o Supremo Tribunal Federal tenha mudado a forma como interpreta as leis”, diz Alice.
“O que me garante que eles não farão o que fizeram com o aborto agora?”
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil, porém, acham improvável que a interpretação da Constituição mude dessa forma.
Isso porque, se a Suprema Corte decidir que Trump está certo, os impactos da decisão irão muito além dos direitos dos nascidos no país a partir de 2025, como a filha de Alice.
A Constituição é uma só e a sua aplicação deve ser igual a todos os cidadãos do país. Uma nova interpretação seria então aplicada retroativamente a todos os que pudessem se qualificar para os casos, apontam os especialistas.
Como resultado, qualquer pessoa viva nascida de pais imigrantes indocumentados ou temporários perderia o seu direito à cidadania dos EUA, a menos que fosse abrangida por alguma outra regra.
“Eu ficaria muito surpreso se os tribunais estivessem dispostos a retirar a cidadania de pessoas que efetivamente a mantiveram durante toda a vida”, diz Erman.
Para Almeida, tal decisão colocaria o país numa enorme incerteza jurídica, bem como num desafio logístico de reorganizar a documentação de milhões de pessoas.
“Para mim é um ato muito mais simbólico, muito mais para Trump comunicar aos seus eleitores que fez o que prometeu e desencorajar a imigração”, afirma Almeida.
“Particularmente porque não vejo a viabilidade disso ser estabelecido.”
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