A brasileira Rebeca Gonçalves relembra com saudade as histórias que ouviu do tio astrônomo durante a infância.
Para ela, conhecer os detalhes planetasconstelações, estrelas e satélites sempre foram objeto de fascínio.
Porém, alguns anos depois, quando chegou a hora de escolher uma faculdade, ela optou por se especializar em outra área de interesse: biologia.
“Na altura, tive a ideia errada de que o sector espacial era apenas para quem queria tornar-se astronauta“, ela lembra.
Porém, poucos anos depois de obter o diploma e seguir a carreira em Ciências Biológicas, Gonçalves entrou numa crise existencial. “Comecei a pensar no que estava fazendo da minha vida e se era disso que eu realmente gostava.”
Foi nessa altura que ela teve uma ideia: porque não unir as duas paixões? Foi assim que ela decidiu perseguir seu sonho de se tornar uma astrobiólogo.
Para tanto, Gonçalves encontrou um programa de mestrado sobre o tema no Centro de Análise em Sistemas de Colheita da Universidade de Wageningen, localizado em Holanda.
“Decidi investigar como podemos usar recursos limitados, como água, nutrientes e energia, para cultivar alimentos em Marte“, resume o pesquisador.
“Afinal, este é um fator muito importante para a segurança das futuras colônias marcianas. Elas não poderão depender do envio de suprimentos por foguetes do Terra“, Ela adiciona.
Para realizar esse trabalho, o brasileiro recebeu orientação do ecologista e exobiólogo Wieger Wamelink, professor da universidade holandesa e um dos poucos cientistas no mundo a estudar a viabilidade de estabelecer plantações fora do planeta Terra.
“Para se ter uma ideia de como a agricultura espacial é um campo novo, meu orientador é uma das primeiras pessoas no mundo a estudar o assunto e publicou cerca de seis artigos até agora”, diz ela.
Inspiração que vem do passado
Mas como seria plantar uma plantação num lugar distante como Marte? Será possível que espécies vegetais típicas do nosso planeta se desenvolvam num ambiente tão diferente?
Para responder a estas questões, a primeira fase do trabalho de Gonçalves consistiu no estudo de diferentes técnicas agrícolas que pudessem garantir a sobrevivência das plantas — e eventualmente até aumentar a sua produtividade.
Foi nesta fase que o cientista descobriu uma abordagem chamada policultura, socialização de culturas ou consórcio. “Esta é uma prática antiga que foi inventada pelos maias”, explica ela.
Vale lembrar que os maias formaram uma das civilizações mais importantes da Mesoamérica — região que abrange partes dos atuais México, Belize, Guatemala, Honduras e El Salvador.
Esses povos antigos são conhecidos por seu sistema de escrita bastante avançado, além de terem alcançado avanços notáveis em áreas como matemática, arquitetura, arte e até astronomia.
Na agricultura, os maias se destacaram pelo cultivo consorciado — enfim, cultivavam abóbora, feijão e milho, entre outros, no mesmo local.
“A ideia é aproveitar o mesmo espaço de terreno para plantar espécies que tenham qualidades complementares, para que uma ajude no desenvolvimento da outra”, resume Gonçalves.
A brasileira considerou que o consórcio poderia ser uma boa ideia para Marte e logo conquistou o apoio e o entusiasmo de seu orientador.
“A ideia era bastante inovadora, ninguém havia testado nada parecido na área de agricultura espacial”, diz ela.
Começou assim uma nova fase de pesquisa: quais plantas incluir no estudo? “Passei quase três meses para selecionar a espécie ideal”, confessa a pesquisadora.
No final, os escolhidos foram cenoura, ervilha e tomate cereja — cada um por um motivo específico.
“As ervilhas, ou leguminosas em geral, têm uma espécie de superpoder, que é fazer parceria com uma bactéria que vive no solo”.
“Juntas, elas transformam o nitrogênio em amônia no solo. É como se essas plantas produzissem seus próprios fertilizantes”, ensina Gonçalves.
O tomate cereja cresce como um pequeno arbusto, que tem dupla função: servir de suporte para o crescimento dos ramos da ervilha e fornecer semi-sombra para que as plantas de cenoura se desenvolvam rente ao solo.
Por fim, a cenoura foi selecionada pela sua capacidade de arejar o solo com suas pequenas raízes.
A ‘terra’ de Marte
Mas tal experiência só poderia ter qualquer utilidade prática se utilizasse solo semelhante ao que os futuros exploradores encontrarão no planeta vermelho.
Para isso, Gonçalves contou com a valiosa ajuda da NASA, agência espacial dos Estados Unidos.
“Como já foram enviadas sondas e robôs para Marte, sabemos exatamente a composição física e química do solo deste planeta, que se chama regolito”, explica Gonçalves.
“Com essas informações, os cientistas desenvolveram um regolito marciano a partir de material de consistência semelhante e retirado de um vulcão no Havaí ou do deserto de Mojave, ambos nos EUA”.
Esse composto é manipulado em laboratório para ser 97% semelhante ao regolito marciano — ou seja, um solo que não possui nenhum nutriente ou matéria orgânica em sua composição.
Com a técnica, as espécies e os materiais definidos, Gonçalves estava pronto para colocar a mão na massa e ver como as plantas se desenvolveriam.
“E ficamos muito felizes com os resultados que obtivemos”, antecipa o astrobiólogo. O trabalho que também incluiu contribuições dos cientistas Peter van der Putten e Jochem B. Evers foi publicado no início de maio na publicação acadêmica Plos One.
“Conseguimos demonstrar que a técnica funciona muito bem para uma das três espécies analisadas”, acrescenta.
Nas estufas da universidade, os tomateiros cultivados no regolito marciano com o sistema consorciado produziram o dobro de frutos em comparação com plantas da mesma espécie que cresceram sozinhas.
“O tomateiro consorciado desenvolveu-se mais, teve tronco mais grosso e amadureceu mais cedo”, diz Gonçalves.
Para as ervilhas, o resultado da comparação terminou empatado: estas plantas desenvolveram-se de forma semelhante, quer tenham sido plantadas em conjunto com outras espécies ou isoladamente.
Já a cenoura preferia a monocultura (ou seja, o cultivo separado, em espaço reservado apenas para aquela hortaliça).
“O fato do consórcio ter trabalhado para uma das espécies representa uma base incrível para construirmos pesquisas futuras”, analisa o cientista.
“Agora a questão é fazer pequenos ajustes, como modificar os nutrientes ou escolher outras espécies para compor o sistema”.
Benefícios para ambos os planetas
Gonçalves reforça que, embora a pesquisa se concentre em futuras expedições humanas a Marte, ela pode gerar repercussões positivas no planeta que habitamos hoje.
“A Terra enfrenta um grande problema: cerca de 40% dos solos agrícolas foram degradados, em grande parte por causa da monocultura”, estima.
“Esta é uma questão que afecta 1,5 mil milhões de pessoas em todo o mundo e tem repercussões na segurança alimentar e financeira de muitas famílias, especialmente dos pequenos produtores”.
A astrobióloga destaca que as técnicas de cultivo consorciado — como a utilizada em sua pesquisa — são uma estratégia comprovadamente eficaz para a regeneração do solo.
“Esses sistemas não são utilizados em larga escala porque ainda são um tanto caros e exigem mais manutenção quando comparados à monocultura”, compara.
Para futuras colônias de seres humanos que vão para Marte, cultivar diferentes alimentos em conjunto traz uma série de vantagens, a começar pela otimização de recursos — afinal, é possível utilizar uma porção de água ou fertilizantes em um espaço menor.
Além das barreiras logísticas que dificultam o envio de remessas de alimentos da Terra, há também uma questão de saúde que justifica o desenvolvimento de uma “fazenda espacial”.
Até o momento, os astronautas sobrevivem com alimentos desidratados — como não carregam água, são muito mais leves, compactos e fáceis de transportar.
“Mas esse processo de desidratação elimina todos os antioxidantes dos alimentos, como as vitaminas A e C, o betacaroteno e o licopeno, essenciais para a saúde humana”, explica o astrobiólogo.
“Isso significa que, se quisermos colonizar a Lua ou Marte, seremos obrigados a plantar alimentos frescos, pois existem certos nutrientes que só existem nestas fontes”, reforça.
Para o cientista, a primeira geração de cultivares precisará contar com insumos externos, como nutrientes e fertilizantes vindos da Terra.
“Mas, a partir da segunda geração, poderemos criar um sistema autossustentável, em que utilizamos as partes não comestíveis das plantas, além das fezes e da urina humana, para fazer fertilizante”, prevê.
Este cenário futuro refere-se ao filme Perdido em Martelançado em 2015. Na trama, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) se encontra sozinho no planeta vermelho e precisa encontrar formas de sobreviver.
Em uma das cenas, Watney cria uma plantação de batatas — e usa suas próprias fezes para fertilizar o tubérculo em solo marciano.
“É totalmente possível pensar numa possibilidade como essa, como mostra o cinema. Na verdade, esse filme teve um consultor científico que trabalhou na NASA, então grande parte do roteiro está de acordo com as evidências”, explica Gonçalves.
O Sistema Solar está bem ali
O cientista destaca que a exploração espacial vive uma nova era de ouro.
O Programa Artemis, liderado pela NASA, pretende “lançar as bases para a exploração científica da Lua a longo prazo”, com missões programadas para 2025, 2026 e 2028.
Em dois anos, a agência espacial pretende levar os primeiros astronautas ao Pólo Sul do nosso satélite natural. A construção das bases de uma futura estação espacial lunar está prevista para começar em 2028.
“E, na próxima década, é muito provável que os primeiros seres humanos sejam enviados também para Marte”, acredita Gonçalves.
Diante desse futuro não tão distante, o astrobiólogo destaca a necessidade de avançar nas pesquisas sobre agricultura no espaço.
Ela lembra que o Brasil é um dos signatários dos Acordos Artemis, uma série de tratados para a exploração pacífica da Lua, de Marte e de outros objetos astronômicos.
“Nesses acordos, o Brasil se comprometeu como nação a realizar estudos relacionados à agricultura, pois é referência mundial nessa área”, informa o pesquisador.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Agência Espacial Brasileira criaram até uma parceria para desenvolver pesquisas que garantam segurança alimentar para futuras colônias lunares e marcianas.
Ao traçar os próximos passos de sua carreira e se livrar de impressões antigas — como pensar que só astronautas poderiam trabalhar neste universo —, a astrobióloga destaca as oportunidades no setor espacial.
“Não importa se você é designer, engenheiro, biólogo, químico, relações públicas, jornalista, diplomata… Sempre haverá oportunidades em uma área tão ampla como esta”, afirma.
“E é importante lembrar que o setor espacial tem impactos diretos no nosso mundo: diversas tecnologias essenciais hoje surgiram de pesquisas nessa área, como GPS, Wi-Fi, celulares, próteses e roupas para bombeiros”, finaliza. .
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