No que resta da Rua Aníbal Brandão, no concelho da Estrela, interior da Rio Grande do Sula professora Márcia Engster, 55 anos, enfrentou a lama para verificar os estragos.
Durante décadas, seus pais economizaram dinheiro e compraram terras às margens férteis do rio Taquari. Eles eram os herança de uma vida.
As águas de Cheias de Abril e Maio Este ano, porém, levou não apenas casas e vidas.
A destruição de maior desastre climático do Rio Grande do Sul fez com que o valor de áreas inteiras de cidades gaúchas “evaporasse”.
“Há dois anos, meu pai vendeu parte das nossas terras. Estava avaliada em R$ 1,7 milhão por hectare. No ano passado, depois das enchentes de setembro, valia R$ 237 mil. Hoje não tem valor nenhum”, disse Márcia à BBC. Notícias Brasil.
A reportagem reflete um efeito observado pela reportagem da BBC News Brasil em todo o Estado do Rio Grande do Sul, mas com particular incidência no Vale do Taquari: o choque da empobrecimento de milhares de famílias numa região considerada próspera e com bons indicadores económicos e sociais.
Moradores e especialistas apontam que esse fenômeno já pode ser sentido tanto pela queda no valor das pequenas propriedades ou propriedades residenciais quanto pela perda de bens acumulados ao longo da vida.
Os moradores da região temem que a sucessão de enchentes que atingem o vale há alguns anos faça com que as empresas procurem áreas mais seguras para se instalarem e, com isso, tirem empregos e riquezas.
Prosperidade e risco
Ó Vale do Taquari é uma região formada por 36 municípios ao norte da capital gaúcha, Porto Alegre, que possui 361 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Antes da chegada dos europeus, o vale era habitado por indígenas, principalmente da etnia Guarani.
Após o processo de colonização, passou a ser ocupada por portugueses, espanhóis e africanos escravizados. A partir de 1850 a região recebeu imigrantes alemães e italianos.
O rio Taquari, que dá nome à região, corta uma cadeia de morros geologicamente antigos. Nas suas margens cria um vale fértil utilizado para a agricultura e onde está localizada a maior parte de suas cidades.
Segundo o geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Guilherme Garcia de Oliveira, a economia da região é baseada na agricultura, na indústria de processamento de alimentos e no setor de serviços.
“Comparada a outras regiões do Estado, é uma região próspera. Algumas cidades apresentam excelentes indicadores sociais e, em média, há baixa desigualdade social”, diz Oliveira.
A maior cidade da região é Lajeadocom 93 mil habitantes, quase um terço do total de moradores do vale.
O município tem Produto Interno Bruto (PIB) per capita de R$ 65 mil — 85% superior à média nacional, que, em 2021, era de R$ 35 mil.
O PIB per capita é a divisão de toda a riqueza produzida dividida pela população total.
As escolas públicas são relativamente boas e apresentam indicadores superiores à média nacional.
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2021 nos anos letivos iniciais da rede pública de Lajeado foi de 6,3 enquanto a média brasileira foi de 5,5.
Mas a mesma geografia que ajudou a trazer relativa prosperidade ao Vale do Taquari também apresentou riscos.
O Rio Taquari recebe águas pluviais que caem nas encostas dos morros. Quando as chuvas são fortes, o nível do rio sobe rapidamente. Com a ocupação acelerada de suas margens, as enchentes vêm causando estragos à população.
Esta localização peculiar tornou a região uma das mais afetadas pelas cheias deste ano.
Cidades como Estrela 75% do seu território ficou submerso. Para piorar a situação, a região já tinha sido alvo de outras duas graves cheias no ano passado, em Setembro e Novembro.
Indicadores deste impacto são o número de mortes e desaparecimentos causados pelas inundações.
A região tem apenas 3% da população do Rio Grande do Sul, segundo o IBGE, mas 19,5% das mortes registradas pelas enchentes de 2024 até agora ocorreram no Vale do Taquari, segundo a Defesa Civil estadual. Dos desaparecidos, 44% são da região.
Pobreza instantânea
A professora Márcia Engster não foi a única a perceber que, da noite para o dia, sua família ficou mais pobre.
Para a vendedora Márcia Almeida, o impacto foi ainda mais severo. Ela contou à BBC News Brasil que a casa onde morava no bairro Moinhos, na Estrelacom dois dos seus três filhos foi completamente destruída.
Com os abrigos também enfrentando chuva, ela montou uma barraca de lona na calçada de uma avenida da cidade para se refugiar.
Há duas semanas, em entrevista à BBC News Brasil, ela relatou como as enchentes desvalorizaram o patrimônio de sua família.
“Minha mãe tem 65 anos. Ela tem escritura de cinco terrenos no bairro dos Moinhos. Ela olha a escritura e só chora porque não vale nada”, disse ela, aos prantos.
“Acredito que valiam R$ 300 mil ou R$ 400 mil há um tempo atrás. Hoje, se eu for lá e te mostrar e pedir R$ 100, não vale”, disse.
O economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), Giovanni Baggio, afirma que a desvalorização imobiliária é apenas um dos fenômenos que moradores de regiões como o Vale do Taquari terão de enfrentar nos próximos anos.
“Essa desvalorização está ocorrendo. Se uma pessoa decidir migrar e vender suas terras ou suas casas, o preço que receberá neste momento é muito inferior ao preço que obteria há dois anos”, afirma Baggio à BBC News Brasil.
Baggio afirma que as inundações dos últimos meses e a perspectiva de vulnerabilidade da região a novos eventos climáticos extremos podem levar ao empobrecimento local.
Segundo ele, o medo de novas tragédias pode levar a uma fuga de empresas e indústrias para áreas mais seguras do Estado. Com isso, haveria uma espécie de efeito dominó.
“Conversei com alguns empresários que já relataram a intenção de buscar novos locais”, disse Baggio.
“Com menos empresas, haverá menos receitas e menos dinheiro a circular nas cidades. As pessoas acabarão por procurar oportunidades noutras regiões. Isto poderá levar ao empobrecimento da região.”
É esse efeito dominó que o empresário Pedro Henrique Bonatto, 65 anos, teme.
Ele mora em Lajeado e tem uma empresa que vende e conserta balanças desde 1999. Na região, mantém uma clientela cativa formada por mercados e indústrias.
Bonatto disse à BBC News Brasil que os negócios já haviam se recuperado ao mesmo nível pré-pandemia do covid-19 e que as perspectivas para o futuro eram boas. Até que vieram as enchentes.
Ele tem um prédio de três andares onde mora e onde atua sua empresa. Ele foi o único que ficou de pé após a enchente: “Nesta quadra, só eu (permaneci).
As águas danificaram balanças de clientes, equipamentos de manutenção, estoques totalmente novos e instalações da empresa.
O prejuízo preliminar é estimado por ele em R$ 100 mil. Bonatto diz temer que os eventos climáticos extremos que vêm afetando a região possam levar ao empobrecimento do Vale do Taquari.
“Depois de passar por três enchentes, tem clientes que vão desistir do mercado. E esses clientes têm dívidas conosco. Temos muito capital empregado. Tem uma parte do mercado que não vai mais existir”, diz o homem de negocios.
“Esse é um medo que eu tenho e é concreto porque muita gente já desistiu”.
Giovanni Baggio, da Fiergs, acredita que isso pode sim se tornar realidade.
“Com menos população e menos empresas, as pessoas que aí ficam tenderão a viver numa região com dinâmica económica mais lenta e isso pode aumentar os níveis de pobreza”, afirma o economista.
O professor Guilherme Garcia afirma que os impactos econômicos das enchentes já podem ser sentidos nas cidades do Vale do Taquari.
“Do ponto de vista do empobrecimento, a tendência é que, pelo menos no curto prazo, isso tenha um impacto severo”, explica.
“No campo, muitas famílias perderam a produção de laticínios, arroz, milho e outras culturas. Isso afeta diretamente a indústria alimentícia que é abastecida por essa produção. Uma coisa afeta a outra”.
O que esperar no futuro
Garcia afirma que, apesar de haver uma tendência ao empobrecimento na região, a intensidade com que isso poderá acontecer é incerta.
“Não diria que se trata de um processo sem retorno”, afirma a pesquisadora.
“Certamente, este evento terá um impacto no PIB, mas não acredito que será suficiente para mudar toda a região do nível de desenvolvimento humano em que se encontra hoje.”
Segundo ele, o futuro da região dependerá das medidas que serão tomadas pelas autoridades envolvidas no reconstrução do Rio Grande do Sul.
O governo federal afirmou em nota ao relatório que “tem trabalhado dia após dia para disponibilizar recursos ao Estado em diversas frentes, seja em investimento direto, recursos para ações de socorro e atendimento às vítimas, medidas de reforço de linhas de crédito , antecipação de benefícios, suspensão de pagamento de dívidas, linhas de crédito para empresas, entre outros, que ultrapassam R$ 79 bilhões”.
A BBC News Brasil enviou perguntas ao governo do Rio Grande do Sul, mas não houve resposta.
“É preciso ver o montante de recursos que serão destinados à reconstrução das cadeias produtivas do Vale do Taquari. É preciso também saber como acontecerão os projetos de adaptação desses municípios às mudanças climáticas”, afirma Garcia.
“Se o trabalho de reconstrução for bem executado, o empobrecimento da região não deverá ser tão grave como noutras regiões.”
Garcia aponta outro fator que o faz acreditar que o empobrecimento do Vale do Taquari pode não se tornar uma realidade inexorável. “As pessoas da região são muito resilientes”, disse o pesquisador.
“Em março deste ano visitei o Vale do Taquari. Fazia pouco mais de seis meses desde as grandes enchentes de setembro de 2023. Em muitos locais, a recuperação das áreas foi tão bem feita que foi impossível perceber que elas foram atingidos por um evento desse tamanho. Muitas pessoas resistirão.”
É o caso do empresário Pedro Bonatto. Ele diz que, apesar de todos os prejuízos, não pensa em abandonar Lajeado.
“No fundo, não aceito (mudar). Acho que é possível mudar as coisas”, afirma.
“Deus me ajudou e vou conseguir. Meus vizinhos praticamente não existem mais. Meu sentimento é de gratidão.”
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