A polêmica Proposta de Emenda Constitucional que pretende alterar as regras que regem o controle da costa brasileira, popularmente chamada PEC das Praiascom base no fato de que, no Brasil, os terrenos litorâneos são públicos, considerados “áreas marinhas” e, portanto, pertencentes à União.
A origem desse entendimento remonta ao Brasil colonial, quando a Coroa portuguesa decidiu reservar para si esses espaços em vez de incluí-los nas sesmarias distribuídas aos colonizadores.
O objetivo era manter o controle da produção de sal e garantir a defesa contra potenciais invasores vindos do oceano.
Estudioso das monarquias portuguesa e brasileira, o pesquisador e biógrafo Paulo Rezzutti conta à BBC News Brasil que o primeiro documento que regulamentou essas áreas foi a carta régia assinada por Dom João 5º (1689-1750) em 21 de outubro de 1710.
“Determinou que as marinhas fossem reservadas à Coroa portuguesa. As praias costeiras deveriam ser livres de construção”, destaca.
Isso repercutiu nas chamadas sesmarias, as transferências de terras feitas pelo reino português aos colonizadores que vieram ocupar e explorar o Brasil.
Segundo o pesquisador, a princípio o tamanho dessa faixa de terra não era claro, mas aos poucos novas letras régias foram se tornando mais específicas, até atingirem a medida de 15 braças — o equivalente a cerca de 33 metros.
“Até a independência [do Brasil] O que prevaleceu foi a orientação geral para o uso e exploração dos territórios portugueses na América, como terras, rios, zonas costeiras e florestais. A padronização geral e colonial portuguesa seguiu os interesses e conveniências nas relações de lealdade e fidelidade aos propósitos da Monarquia e dos sucessivos reinados, em particular”, comenta o historiador Paulo Henrique Martinez, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), à BBC News Brasil .
“Por isso, as normas e legislações relativas aos espaços coloniais constituem uma série de interdições, proibições e permissões, nominais, específicas, localizadas e temporárias”, afirma.
“As áreas costeiras das capitanias da América portuguesa estavam sujeitas a tais oscilações. Assim como havia concessões para usufruto da terra, também havia concessões para pesca, ocupação, extração e coleta de produtos naturais também em ambientes aquáticos, como o passagem de rios e navegação de cabotagem”.
Shots, sal e peixe
Os objectivos de manter esta faixa de terra sob o comando da Coroa eram por razões de segurança e também de controlo económico.
Numa altura em que qualquer ataque externo viria do Atlântico, foi nas praias que os portugueses construíram fortes. E era preciso manter a área livre de construções, caso fosse necessário o uso de tiros de canhão.
“O objetivo era garantir o controle e a defesa do território, bem como garantir a exploração e o uso estratégico dessas áreas pela Coroa”, afirma o jurista Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing , para a BBC News Brasil. (ESPM).
É uma história atual que explica porque a distância de 15 braças se deveu à potência dos canhões da época. Mas isso não está comprovado e pode ser mais lenda do que realidade.
“A ideia de que tinha a ver com os canhões é mais uma lenda do que um fato histórico comprovado”, diz Crespo.
“Esse limite foi estabelecido mais com base em critérios administrativos e de gestão territorial do que em considerações militares específicas”.
Economicamente, manter essa faixa restrita à Coroa garantia o controle da pesca no litoral. E também na exploração de sal. “Só a Coroa poderia transferir essas áreas para quem quisesse explorar as salinas”, aponta Rezzutti.
Em declarações à BBC News Brasil, o historiador Vitor Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, lembra que “essa delimitação teve como objetivo garantir que a Coroa mantivesse o controle sobre áreas estratégicas de defesa e navegação, evitando que essas terras fossem apropriadas por indivíduos sem recursos adequados controle estatal”.
“Além dos aspectos de defesa e controlo, esta demarcação teve implicações económicas, permitindo à Coroa controlar a utilização dos recursos naturais costeiros e dos pontos de comércio e pesca”, afirma Soares.
Estas quinze braças foram mantidas em 1818, por Dom João 6º (1797-1826) e demarcadas apenas em 1831, no período da Regência.
Segundo Crespo, a medida de João 6 serviu principalmente “para melhorar a gestão e a arrecadação de impostos nestas áreas”.
“Em 1831, durante o período Regencial, houve uma tentativa de modernização e adequação das leis às novas realidades do Brasil independente. A legislação foi ajustada para melhor adequar a administração dessas terras, garantindo que as áreas marinhas continuassem sob controle governamental, hoje brasileiros, e foram utilizados para fins públicos e estratégicos”, destaca o jurista.
“A legislação de 1818 também trouxe regulamentações mais detalhadas sobre a ocupação e uso dessas terras. O objetivo era garantir que essas áreas estratégicas fossem administradas de forma eficiente e que qualquer atividade nelas desenvolvida estivesse sob controle governamental, evitando abusos e garantindo o uso considerado adequado. exploração de recursos naturais”, avalia Soares.
“Estas mudanças reflectiram preocupações crescentes sobre a protecção das zonas costeiras e a necessidade de um controlo mais rigoroso sobre as terras marinhas”.
“A presença da corte portuguesa implicou a readequação das necessidades de transporte, comércio, construção e defesa da costa brasileira”, acrescenta Martinez.
“A definição e exclusividade no uso dos terrenos marinhos estava ligada às oportunidades para esses fins. Instalação de cais, canais, estaleiros, armazéns, abastecimento e fontes de água, matérias-primas, como madeira, lenha, resinas, fibras, instalações para circulação, construção e reparação naval.”
“Essas áreas foram selecionadas e reservadas para uso da Coroa, com durações variadas, dependendo da motivação e da necessidade, como estoque de extração e coleta de recursos aptos à navegação. Esse destino específico sobreviveu”, afirma.
“Ainda hoje existem espaços de uso exclusivo das Forças Armadas, para geração de energia, Terras Indígenas, conservação da natureza e da biodiversidade”.
A legislação de 1831 trouxe um detalhe importante: o chamado “arrendamento privado”, segundo o qual o poder público poderia ceder essas terras em regime de arrendamento de longo prazo a particulares, conforme julgasse adequado – o chamado “refime de enfiteuses”. “.
“Em suma, a lei permitiu às câmaras municipais gerir e utilizar os terrenos marinhos para fins públicos, além de os conceder a particulares mediante o pagamento de uma taxa anual, regularizando assim a ocupação informal e angariando recursos”, afirma Soares.
Professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o historiador Paulo César Garcez Marins lembra à BBC News Brasil que embora o “regime das enfiteusas” não esteja mais presente no atual Código Civil brasileiro, “aqueles que já existiam permanecem válidos”.
“Não se pode criar outros, estabelecer novos, mas pode-se manter os já constituídos”, afirma.
Em 22 de fevereiro de 1868, um novo decreto acabou regulamentando todos os anteriores quanto às unidades de medida. “Foi quando as 15 braças passaram a 33 metros, porque a unidade anterior não era mais utilizada”, explica Rezzutti.
De lá para cá
“A adoção do regime de propriedade privada da terra, a partir de 1850, levou à fragmentação do território nacional em unidades de extensão e localização diversas. O ordenamento do território escapou ao controlo exclusivo do Estado e as zonas costeiras não foram exceção”, avalia Martinez.
“Desde então, os conflitos e disputas pela apropriação e uso do território no Brasil têm assumido proporções crescentes e violência na espoliação de áreas públicas e nos conflitos sociais que cercam as condições de vida e de trabalho de inúmeros grupos populacionais regionais.”
“Terras indígenas, pescadores artesanais, mariscadores, caiçaras, extrativismo em ecossistemas aquáticos e terrestres, como manguezais e lagoas, enfrentam turismo predatório, pesca de arrasto, obras de infraestrutura, expansão urbana, desmatamento, aterros sanitários, poluição química, industrial e doméstica, aterros sanitários, derramamentos de óleo que comprometem o saneamento ambiental marinho e costeiro”, argumenta o historiador.
Havia uma necessidade crescente de controle do Estado. Não mais para defesa ou valor económico, mas para garantir proteção.
“O interesse coletivo, o poder público, a qualidade de vida e as formações socioculturais e naturais do litoral são diariamente prejudicados por interesses privados, individuais e empresariais. em áreas de proteção à natureza e teve anulada a infração que lhe havia sido aplicada por órgãos federais, em benefício próprio”, critica Martinez.
No século XX, a questão das terras da Marinha foi objeto de decreto do então presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), em 5 de setembro de 1946.
Na extensa lei que tratava do patrimônio imobiliário da União, determinou-se que eram terrenos de marinha todos aqueles que estivessem até 33 metros, “horizontalmente”, da “posição da linha de maré alta medida de 1831”. Por maré alta entendemos o nível da maré alta.
Segundo Crespo, esta legislação, “com algumas modificações ao longo dos anos, é a base do que hoje vigora”.
“Essa regulamentação foi mantida e adaptada ao longo dos séculos, sendo incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro após a independência do país. Atualmente, a legislação que trata das terras marinhas está incluída no Código Civil Brasileiro e em outras normas específicas que regulamentam o uso e a ocupação dessas áreas”, comenta Soares.
Ressalta que embora a legislação de 1946 “continue a ser a base para a regulamentação dos terrenos marinhos”, foi “complementada e atualizada por outras regulamentações”, principalmente por uma lei de 1998 “que trouxe mais detalhes e modernizações à administração, regularização , posse e alienação de bens imóveis de propriedade da União”.
O último capítulo dessa história, pelo menos até a discussão suscitada pela PEC das Praias, foi a Constituição de 1988, em vigor.
“Foi quando essas terras da Marinha passaram a ser preceito constitucional, incluídas como patrimônio da União”, aponta Rezzutti.
“A PEC das Praias nada mais é do que a cara desse Brasil, um predador de ecossistemas e formas de vida. É um documento atual do processo de autoatribuição de privilégios em detrimento da população brasileira, do público global e do coletivo bens e patrimônio”, critica Martinez.
“Em termos sócio-políticos, deveria ser classificado como prática de racismo ambiental e, como tal, banido da agenda legislativa como uma afronta aos direitos humanos e aos princípios do Estado democrático de direito”.
O relator do texto no Senado, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), argumentou que a PEC não será para “privatizar” praias, mas terá efeitos positivos, por exemplo, concedendo títulos de propriedade a comunidades que já ocupam o áreas – incluindo alguns grupos quilombolas.
“A legislação sobre áreas marinhas tem sido constantemente revista para se ajustar às mudanças sociais, econômicas e ambientais”, afirma Crespo.
“Recentemente, os debates sobre ocupação irregular, preservação ambiental e uso sustentável dessas áreas ganharam destaque, refletindo a importância contínua da gestão adequada e equitativa dos espaços públicos costeiros no Brasil.”
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