Quando a cidade americana de Evanston, no estado de Illinois, implementou um programa de reparação financeira para residentes negrosem 2021, a iniciativa foi celebrada como modelo em NÓS.
Enquanto outras cidades e estados já estudavam formas de oferecer indenização à população negra pelos danos causados escravidão e devido às políticas de segregação e discriminação racial, o governo de Evanston foi o primeiro no país a alocar fundos para este fim.
O programa na cidade, que fica na região metropolitana de Chicago, concentra-se no setor habitacional e no período de 1919 a 1969, quando as políticas de zoneamento e as práticas discriminatórias dificultaram ou muitas vezes impossibilitaram a compra de imóveis pelos negros.
Até o mês passado, 193 pessoas foram beneficiadas, recebendo US$ 25 mil (cerca de R$ 132,3 mil) cada, num total de quase US$ 5 milhões (cerca de R$ 26 milhões).
Agora, porém, Evanston tornou-se alvo de uma ação judicial que poderá ter impacto nos programas de reparações em todo o resto do país.
No final de maio, a Judicial Watch, uma organização sem fins lucrativos que se descreve como “uma fundação educacional conservadora e apartidária que promove a transparência, a responsabilização e a integridade no governo, na política e na lei”, anunciou que estava processando a cidade.
A ação questiona o uso de corrida como um requisito de elegibilidade para o programa de reparações e alega que este critério representa discriminação racial contra residentes que não são negros e, portanto, viola a cláusula de proteção igualitária da 14ª Emenda da Constituição dos EUA.
A ação coletiva foi movida em nome de seis moradores que não são negros e pede que o uso da raça no programa de Evanston seja declarado inconstitucional e que a cidade seja proibida de continuar a usar essa exigência. Os autores pedem ainda uma indenização de US$ 25 mil cada, mesmo valor destinado aos beneficiários do programa.
“O programa de reparações de Evanston nada mais é do que uma manobra para redistribuir o dinheiro dos impostos aos indivíduos com base na (sua) raça”, diz o presidente da Judicial Watch, Tom Fitton.
“Este esquema discrimina inconstitucionalmente qualquer pessoa que não se identifique como negra ou afro-americana”, diz ele.
A gerente de comunicação da cidade de Evanston, Cynthia Vargas, disse à BBC News Brasil que não pode comentar os detalhes dos processos pendentes.
“Mas defenderemos veementemente o programa de reparações da nossa cidade de qualquer ação legal”, destaca Vargas.
Os detalhes do programa
Apenas cerca de 16% dos 75.000 residentes de Evanston são negros. Durante décadas, esse segmento da população foi alvo de medidas discriminatórias comuns em diversas cidades americanas na primeira metade do século passado.
As escrituras em muitas cidades tinham “cláusulas de restrição racial”, proibindo pessoas que não fossem brancas de ocupar determinadas propriedades. Outras vezes, os proprietários simplesmente se recusavam a vender para compradores negros.
Essas e outras restrições acabaram empurrando os moradores negros para áreas menos valorizadas, afetando sua capacidade de acumular riquezas por meio de imóveis e, assim, repassar essa riqueza aos seus descendentes. O impacto destas medidas ainda persiste em todo o país.
De acordo com os dados do censo mais recente, cerca de 44% das famílias negras nos Estados Unidos possuem casa própria, bem abaixo da taxa de 72% entre as famílias brancas. Os imóveis em áreas de maioria branca continuam a ter valores mais elevados do que em bairros de maioria negra.
Ao elaborar o seu programa de reparações, Evanston encomendou um relatório detalhado sobre as políticas discriminatórias adoptadas entre 1919 e 1969 e o seu impacto sobre a população negra.
Segundo o documento, mesmo depois de 1969, quando entrou em vigor uma lei que proíbe a discriminação no sector habitacional da cidade, a prática de os agentes imobiliários tentarem empurrar compradores e inquilinos negros para determinados bairros continuou durante anos.
O programa de reparações está aberto a negros que viveram em Evanston entre 1919 e 1969 ou cujos pais, avós ou bisavós viveram na cidade. Residentes negros que possam provar que foram discriminados depois de 1969 também podem se inscrever.
Inicialmente, os beneficiários receberam US$ 25 mil na forma de subsídios para ajudar na compra ou reforma de um imóvel. Posteriormente, foi incluída a possibilidade de recebimento do pagamento em dinheiro, para ser utilizado como o beneficiário preferir.
Quando foi criado, em 2019, o fundo de reparações previa um total de US$ 10 milhões (cerca de R$ 53 milhões) ao longo de dez anos, financiado principalmente com impostos sobre a venda de maconha, recentemente legalizada no Estado.
Outros US$ 10 milhões, provenientes de impostos sobre vendas de imóveis, foram acrescentados posteriormente, elevando o total destinado ao programa para US$ 20 milhões (cerca de R$ 106 milhões) em dez anos.
O início da distribuição dos recursos foi aprovado pela Câmara Municipal em 2021, e os primeiros beneficiários começaram a receber subsídios em 2022. Em relatório de maio deste ano, a prefeitura informou que 193 pessoas receberam pagamentos até agora, e outras 390 já foram aprovados.
Os detalhes do processo
A ação contra Evanston alega que, ao abranger apenas pessoas negras, o programa estaria discriminando indivíduos de outras raças. Um dos pontos destacados é que os candidatos ao programa precisam declarar se eles e seus antepassados se identificam como negros ou afro-americanos.
A ação coletiva diz que os seis residentes representados “atendem a todos os requisitos de elegibilidade como descendentes diretos (de pessoas que viveram em Evanston de 1919 a 1969), exceto o requisito racial”.
Os autores criticam o fato de que, desde que sejam negros e tenham vivido na cidade entre 1919 e 1969 ou sejam descendentes de moradores desse período, os candidatos ao programa não precisam comprovar que sofreram discriminação. Este requisito aplica-se apenas àqueles que afirmam ter sido discriminados depois de 1969.
“A utilização da raça (pelo programa) como indicador de ter sofrido discriminação entre 1919 e 1969 não limita a elegibilidade às pessoas que realmente sofreram discriminação nesse período e é, portanto, excessivamente inclusiva”, diz o texto da ação.
Os demandantes argumentam que o programa deveria ser limitado a pessoas que possam provar que foram discriminadas pelas políticas da cidade.
“(A cidade) não considerou alternativas racialmente neutras, como exigir que potenciais beneficiários demonstrassem que eles ou seus pais, avós ou bisavós realmente sofreram discriminação habitacional durante o período relevante”, diz o processo.
A Judicial Watch tem um extenso histórico de ações judiciais contestando o que considera “discriminação inconstitucional” em diversas cidades e estados americanos, envolvendo programas que beneficiam pessoas com base em raça ou gênero, entre outros pontos.
Desde que a Suprema Corte, a mais alta corte dos Estados Unidos, proibiu o uso da raça dos candidatos como critério de admissão em universidades no ano passado, diversas organizações em todo o país têm contestado ações afirmativas em diversos setores.
“A decisão da Suprema Corte deu confiança a esses grupos”, disse à BBC News Brasil o professor de direito Justin Hansford, da Howard University, em Washington.
“Mas precisamos deixar claro que há uma enorme diferença entre ação afirmativa e reparações, especialmente no âmbito da lei”, enfatiza Hansford, que é especialista em reparações e foi nomeado pelos Estados Unidos para servir como membro fundador da o Fórum Permanente para Pessoas de Descendência Africana da ONU.
Hansford salienta que embora a decisão do Supremo Tribunal vise a acção afirmativa, destinada a expandir a diversidade, no caso das reparações o objectivo é reparar danos passados.
“No caso de reparações, é preciso ter uma discussão aberta sobre os danos que aconteceram no passado”, salienta Hansford. “Você não pode simplesmente dizer ‘vamos nos concentrar no futuro’.”
“O processo (contra Evanston) tenta fazer parecer que qualquer questão envolvendo justiça racial está coberta pela decisão da Suprema Corte. Mas isso não é verdade”, afirma ela.
Impacto em outras iniciativas
Um ponto importante no caso contra Evanston é o argumento de que o programa de reparações viola a 14ª Emenda da Constituição dos EUA. A mesma interpretação foi usada quando a Suprema Corte proibiu a ação afirmativa nas universidades.
A 14ª Emenda foi adotada em 1868, após o fim da Guerra Civil. Com a abolição da escravatura, o objetivo era garantir direitos iguais aos negros americanos.
Mas o argumento contra os programas que beneficiam as minorias raciais é que, tal como a 14ª Emenda proíbe negar a alguém protecção igual perante a lei por causa da sua raça, o governo não pode recompensar alguém com base na sua raça.
“(Essa interpretação) significa tentar agir como se você não pudesse falar sobre raça quando está usando a 14ª Emenda. Isto vai contra a intenção da 14ª Emenda e a forma como ela existe há mais de 100 anos”, diz Hansford.
O processo contra Evanston acaba de ser anunciado e ainda não há prazo para uma decisão. Mas o resultado poderá ter um impacto nas propostas de reparações nos Estados Unidos.
O debate sobre reparações voltou a ganhar força na esteira dos protestos contra a injustiça racial que se espalharam pelo país em 2020. Atualmente, existem iniciativas ou estudos sobre reparações, em diferentes etapas e formatos, em dezenas de cidades e em estados como Califórnia e Nova York.
Mas apesar de diversas propostas recentes, o tema ainda gera polêmica. Segundo o Pew Research Center, apenas 30% dos americanos afirmam que descendentes de pessoas escravizadas no país deveriam receber algum tipo de pagamento.
“As opiniões sobre as reparações pela escravatura variam muito consoante a raça e a etnia”, afirma o instituto, observando que 80% dos brancos, 65% dos asiáticos e 58% dos hispânicos rejeitam a ideia. Entre os entrevistados negros, 17% são contra.
Os defensores das reparações salientam frequentemente que os impactos cumulativos da escravatura, da segregação e da discriminação ainda são visíveis hoje nas desigualdades raciais de rendimento e riqueza que persistem nos Estados Unidos.
Mas os críticos questionam a viabilidade de compensar de forma justa os descendentes dos escravizados. Além disso, consideram injusto exigir que o pagamento seja suportado pelos atuais contribuintes, que não têm qualquer ligação com o período da escravidão ou com as antigas leis de segregação.
Mesmo entre apoiadores, há divergências sobre como definir quem teria direito e qual a melhor forma de indenização. Alguns propõem pagamentos directos em dinheiro, outros reparações através de programas em áreas com grandes disparidades, como saúde, educação, emprego e habitação.
“Muitas campanhas (por reparações) estão preocupadas com a ação (contra Evanston)”, diz Hansford. “Faz parte de uma guerra mais ampla pelas reparações no país.”
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