*Este relatório foi publicado originalmente em 9 de maio de 2022
Discussões sobre o aborto dividem frequentemente os fundamentalistas religiosos e aqueles que defendem uma Estado laico e o pleno exercício das liberdades individuais.
Mas o que isso diz Bíblia sobre o aborto?
A Bíblia não fala diretamente sobre o aborto, e as controvérsias sobre o assunto tendem a se concentrar em duas passagens, que permitem diferentes interpretações.
Esses trechos, detalhados abaixo, não abordam diretamente a interrupção do gravidezmas são citados por algumas pessoas religiosas como prova de que o livro sagrado apoiaria a posição de que o aborto seria um pecado e contrário à vontade de Deus. Ao mesmo tempo, outros católicos argumentam que não existem elementos para usar a Bíblia como base para condenar o aborto.
Duas passagens (de antigo Testamento) que são frequentemente citados são:
Logo no início do livro do profeta Jeremias, provavelmente escrito no século VII a.C., o autor se apresenta e em seguida introduz as palavras que lhe teriam sido ditas pelo próprio Deus. E o discurso começa destacando que ele lhe disse que “antes de te formar no ventre, eu te conheci; e antes de você sair de tua mãe, eu te santifiquei”.
Nos Salmos, o maior dos livros que compõem a Bíblia, há outra referência a esta vida que existia antes mesmo do nascimento. Na canção número 139, o autor louva a Deus e diz que “teus olhos viram meu corpo ainda informe”. “E no teu livro foram escritas todas estas coisas, que em continuação foram formadas, quando ainda não havia uma delas”, continua ele.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a principal questão para entender as divergências sobre o tema na esfera religiosa é: quando exatamente começaria a vida?
“É importante destacar que a Bíblia enfrenta o problema do aborto ao destacar o valor da vida humana, aquela chamada por Deus antes mesmo de estar no ventre materno”, argumenta padre Renato Gonçalves da Silva, mestre em teologia com ênfase em escritura sagrada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atualmente estudante de exegese bíblica no Pontifício Instituto Bíblico de Roma.
“Esta mentalidade está presente, de modo especial, em Jeremias [no trecho citado acima]”, analisa, enfatizando o duplo uso do advérbio de tempo “antes”, reforçando a ideia de que já existia vida antes do fato do nascimento.
“O ‘antes’ destaca a verdade bíblica de que a vida humana provém de uma decisão atemporal tomada por Deus, que dentro de sua existência onipotente e sábia já formou, conheceu e santificou a vida humana”, argumenta Silva.
O estudioso destaca que o verbo “formar”, originalmente “iatsar” em hebraico, “traz a ideia fundamental de um ato criativo realizado em um passado muito remoto que, igualmente, pode ser entendido como o eterno presente que define o existência de Deus, que não tem passado nem futuro.”
“Ou seja, a criação de uma vida humana é uma decisão divina tomada de uma vez por todas e que se atualiza sempre, independentemente das circunstâncias do mundo humano”, destaca.
Vida potencial
A respeito do salmo, o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, comenta que “geralmente esta passagem é trazida para dizer que aquela ‘substância ainda informe’ é o processo inicial da vida, portanto já haveria algo ali que já seria uma pessoa.”
“Porque toda a discussão é essa: ser pessoa ou não ser pessoa, quando a vida começa”, pontua Moraes. “Os contrários ao aborto trabalham com a ideia de que a partir do momento da fecundação você tem ali uma pessoa, criada por Deus, mesmo que todo o processo seja orgânico. A alma seria dada por Deus, portanto Deus é o dono da vida, o O Criador.”
O teólogo explica que, segundo esse raciocínio, Deus “conhece o passado, o presente e o futuro e, portanto, atacar aquela substância informe que já seria uma pessoa constituiria crime”.
É claro que esta interpretação não aconteceu da noite para o dia e existem camadas filosóficas para fundamentar a compreensão religiosa com base nestas poucas linhas.
Moraes destaca que se trata de uma lógica “emprestada do pensamento” do grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), no que diz respeito aos conceitos de ato e poder. “A metáfora da semente”, contextualiza o professor.
“A semente tem potencial para virar árvore. É a mesma ideia que se aplica a uma pessoa. Mesmo que no momento da fecundação os braços não estejam, os olhos não estejam, uma pessoa plena, há potencial para isso. E, então, se você deixar essa potência em seu processo natural, depois de nove meses você terá oficialmente uma pessoa vindo ao mundo.”
Moraes reconhece que são poucas as citações e referências bíblicas que permitem interpretações sobre o aborto. E explica que, dentro da mentalidade religiosa, a discussão acaba sendo pautada pela questão de Deus ser entendido como “o criador, o dono da vida”.
“Ele teria consciência de todas as vidas anteriores, mesmo que elas viessem ao mundo”, afirma. “Para uma pessoa religiosa, atacar um feto é atacar a vida”.
‘Direito de decidir’
A organização Católicos pelo Direito de Decidir, grupo que tende a divergir da posição oficial da Igreja em questões relacionadas com os direitos sexuais e reprodutivos, sublinha que a Bíblia não pode ser usada para orientar a criminalização do aborto.
“A questão do aborto não é uma questão bíblica. Os temas bíblicos dizem respeito a horizontes de organização da sociedade, da vida, da linha de defesa da vida para todos. E vida em abundância, como diz o Evangelho”, destaca a socióloga Maria José Rosado , professor da PUC-SP e presidente da entidade.
“Isto significa vida plena, o que para homens e mulheres significa controlo sobre a sua capacidade de fazer outros seres humanos e a capacidade de perceber o que a sua sexualidade e a sua capacidade reprodutiva permitem aos seres humanos fazer”, acrescenta.
“Quando a Bíblia é invocada para condenar o aborto, como geralmente fazem os grupos fundamentalistas, conservadores e neoconservadores religiosos, isso é feito através da reinterpretação de trechos de uma forma que permite apoiar o que querem defender politicamente: a restrição dos direitos sexuais e reprodutivos. “, argumenta o sociólogo Rosado.
“Na verdade, não há base, não há base para invocar a Bíblia a favor desta restrição”, diz ela. “Pelo contrário, como demonstram as teólogas feministas, a Bíblia deveria ser usada para expandir as possibilidades de realizar uma vida plena”.
“A Bíblia não diz nada diretamente sobre o aborto. Não há nenhuma afirmação categórica especificamente sobre o aborto. O que temos são versículos que apontam para a formação do ser humano já no ventre e como desde o ventre, desde o ventre da mãe o ser o ser humano é um ser querido por Deus”, ressalta o estudioso da hagiografia Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro da Hagiography Society, nos Estados Unidos.
O que as igrejas fazem é uma interpretação de certos versículos, continua Maerki. “A Bíblia não tem um mandamento que diga ‘não abortarás’. Temos ‘não matarás’, que muitas vezes é interpretado por pessoas religiosas como uma condenação do aborto”, diz ele.
Muitas confissões religiosas utilizam trechos para “interpretar”, segundo ele, que o aborto é criminoso. “Não é uma afirmação, mas uma interpretação”, diz ele. “O que muitas vezes acontece é uma interpretação fora de contexto, para justificar os seus dogmas, os seus interesses, os seus ensinamentos”, afirma.
Evolução do pensamento cristão
Coordenador do Centro de Fé e Cultura da PUC-SP, o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto vê essas atualizações interpretativas como resultado da evolução do próprio conhecimento humano.
“A doutrina católica sempre condenou o aborto, entendido como o ato de matar uma criança ainda no ventre materno. No entanto, a compreensão científica da concepção e da gravidez mudou muito ao longo dos séculos, e os textos mais antigos nem sempre formularam uma proibição sobre o aborto como proposto atualmente”, contextualiza.
“Isso abriu espaço para que muitos autores considerassem que o aborto era, de alguma forma, aceito pelos cristãos da Antiguidade e da Idade Média. Esta interpretação, que imagina a proibição do aborto como algo recente na história da Igreja, porém, não parecem-me fiéis ao desenvolvimento histórico das ideias”, diz.
Ribeiro Neto destaca que tanto a maternidade como o aborto “estão carregados de significados simbólicos e afetivos”. “É natural que sempre tenha havido pessoas que, mesmo se declarando católicas, não concordassem com o ensinamento oficial da Igreja sobre um tema tão delicado. Na sociedade atual, a pluralidade cultural tem permitido que essas divergências ganhassem espaço no debate público”, explica o acadêmico.
Para ele, porém, “o fenômeno cultural mais marcante, em relação ao aborto, foi a ascensão do individualismo e a absolutização da autonomia individual”.
“Antigamente, a mentalidade hegemônica considerava que a criança era um novo ser humano, desejado por Deus, e a mãe não tinha direito absoluto sobre ela.
Atualmente, a mentalidade hegemônica estabelece que a autonomia da mãe prevalece sobre qualquer outro fato, de modo que o direito à vida do feto é determinado pela vontade da mãe, ou de ambos os pais, no máximo”, analisa Ribeiro Neto.
“Essa mudança cultural impactou diretamente nas interpretações da doutrina católica e explica a consolidação de grupos que tentam mudar o ensino oficial da Igreja Católica sobre o tema”.
Para o padre Renato Gonçalves da Silva “a vida humana, mesmo antes do nascimento” tem um “valor paradigmático na Bíblia”, onde é apresentada como um dom “santificado por Deus”.
Também faz parte do Antigo Testamento, o livro do profeta Isaías, provavelmente do século VIII a.C., há uma passagem que diz “assim diz o Senhor que te criou e te formou desde o ventre e que te ajuda”.
Para Silva, essas passagens ilustram como “todos os homens” são criados “de forma muito concreta” no “ventre materno por Deus, aquele que, num tempo primordial, decidiu pela vida de todo um povo representado na figura singular de cada homem que o compõe.”
“Para o cristianismo bíblico a vida humana é sagrada, já no ventre materno, porque é uma extensão da vida do filho de Deus, Cristo Jesus que vive, de forma paradigmática, em cada homem de uma forma única”, afirmou. acrescenta o religioso.
Silva concorda que o tema, porém, é tratado na Bíblia “implicitamente”. Segundo ele, há dois motivos que justificam esse fato.
Em primeiro lugar, porque os textos sagrados «preferem sublinhar o carácter sagrado da vida humana, tentando persuadir os seus ouvintes a rejeitar o aborto através de argumentos positivos».
Além disso, argumenta o sacerdote, “na mentalidade do homem bíblico, o aborto é uma prática tão explicitamente condenável que não merece grandes discursos para defini-lo como um grande erro”.
Mesmo que não esteja claramente afirmado na Bíblia, há registros que mostram que a criminalização do aborto fazia parte da mentalidade dos primeiros cristãos.
No Didaché, texto de 16 capítulos escrito no primeiro século da Era Cristã, que funcionou como uma espécie de catecismo, há uma passagem que diz: “não matarás, pelo aborto, o fruto do peito”.
“O cristianismo do primeiro século já condenava explicitamente a prática generalizada do aborto entre gregos e romanos”, destaca Silva.
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