Após idas e vindas e longas pausas causadas por pedidos de revisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quinta-feira (3/6) o descriminalização da posse de drogas para consumo.
O julgamento, iniciado em 2015, não analisa a legalidade do vendas de drogasque permanecerá proibido independentemente do resultado.
Até o momento, existem cinco votos a favor e três contra a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.
Ou seja, se houver mais um voto a favor, será formada uma maioria pela descriminalização, apenas no caso desta droga.
O julgamento foi novamente suspenso em março após novo pedido de revisão do ministro Dias Toffoli. Além dele, ainda precisam votar Luiz Fux e Cármen Lúcia.
Por enquanto, os ministros Gilmar Mendes (relator da ação), Luís Roberto Barroso (atual presidente do STF), Rosa Weber (já aposentada), Edson Fachin e Alexandre de Moares se manifestaram a favor da permissão do porte de maconha.
Mas há divergências sobre qual seria a quantidade para diferenciar o tamanho para consumo e para venda.
São quatro votos —Mendes, Moraes, Barroso e Weber— para estabelecer o parâmetro de 60 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar usuário e traficante.
Fachin, por sua vez, considerou que cabia ao Congresso definir esse limite.
Os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques se posicionaram contra a descriminalização.
Os defensores da permissão da posse de pequenas quantidades para uso pessoal dizem que a criminalização viola princípios constitucionais como o direito de cada indivíduo à privacidade.
Argumentam também que a criminalização não produziu resultados na redução do consumo e do tráfico e que seria mais adequado adotar políticas públicas de prevenção, como no caso do uso do cigarro.
Por outro lado, os críticos da descriminalização acreditam que a medida aumentaria ainda mais o consumo e o tráfico e argumentam que os direitos individuais não devem ser colocados acima da saúde pública.
Quem se opõe à descriminalização questiona o impacto do acórdão na redução da população carcerária, tendo em vista que a lei atual não prevê mais pena de prisão para os usuários.
Há também dúvidas se o STF deveria decidir sobre o assunto ou se apenas o Congresso poderia autorizar a posse para consumo, aprovando uma mudança na lei atual.
A expectativa de que o Supremo autorize a posse de drogas para consumo já provocou reação no Parlamento.
Em abril deste ano, o Senado aprovou a chamada PEC das Drogas, proposta de emenda à Constituição que determina ser crime possuir ou possuir qualquer quantidade de drogas, mesmo para consumo pessoal. O texto ainda será analisado na Câmara dos Deputados.
A criminalização da posse e posse, mesmo para consumo pessoal, está atualmente prevista na Lei de Drogas de 2006, que está em vigor. O Código Penal também prevê crimes sobre o tema.
Mas não é algo determinado na Constituição Federal. A intenção da PEC é incluir a norma no texto constitucional, tornando-a superior a uma lei.
Isso, na prática, reverteria qualquer eventual liberação de posse para consumo pelo STF neste julgamento.
O que será julgado pelo STF
O STF analisa recurso extraordinário de repercussão geral, ou seja, a decisão valerá para todos os casos semelhantes.
O recurso questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional.
Este artigo dispõe que é crime adquirir, armazenar ou transportar drogas para consumo pessoal, bem como cultivar plantas para esse fim.
Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas neste caso são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de frequência a programa ou curso educativo”.
O recurso foi interposto pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu flagrado com três gramas de maconha na prisão e condenado a serviços comunitários.
A Defensoria argumenta que a lei viola o direito à liberdade, à privacidade e à automutilação (direito do indivíduo de praticar ações que prejudiquem apenas a si mesmo), garantido pela Constituição Federal.
“Por ser praticamente inerente à natureza humana, não parece o mais sensato buscar a solução ou gestão dos danos causados pelo consumo de drogas por meio do direito penal, por meio da proibição e da repressão”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, no início do julgamento . no STF.
“Trágicas experiências proibitivas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e até mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais males e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo das substâncias narcóticas”.
O então chefe do Ministério Público de São Paulo, procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização.
“O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não é sequer capaz de controlar efetivamente a circulação das chamadas drogas lícitas. Não existe uma rede estruturada de atenção à saúde ou um programa eficaz de reinserção social”, disse Rosa.
Para a Federação Amor-Exigente (AE), que presta apoio e orientação a familiares de dependentes químicos, os direitos individuais do usuário não justificam a descriminalização.
A organização foi aceita pelo STF para atuar no julgamento como amicus curiae, Colaborador da Justiça que tem algum interesse social no caso, mas que não está diretamente ligado ao resultado.
“A saúde pública vem em primeiro lugar. A pessoa que usa crack chega a um ponto em que não tem discernimento para decidir o que é bom e o que é ruim. Quem usa crack pode matar por R$ 10.” , disse à BBC News Brasil o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente.
“É neste sentido que este direito (individual do usuário) não pode ser contraposto à saúde pública e à proteção de toda a coletividade”.
Para o advogado Pierpaolo Bottini, que representa o Viva Rio, amicus curiae favorável à descriminalização, a descriminalização da posse não aumentaria o consumo.
“Não estamos falando em autorizar o uso, mas simplesmente em não criminalizá-lo. Essa ação é até modesta nesse sentido, muito mais modesta do que tem acontecido em outros países, que estão autorizando o uso de determinadas drogas”, disse Bottini, citando o aumento da legalização nos estados americanos.
Outro ponto em discussão é se o Tribunal fixará um quantitativo para diferenciar objetivamente o que é posse para consumo ou para tráfico, parâmetros que podem ser adotados pelo STF mesmo que a criminalização seja mantida.
Os defensores da medida, como a associação que representa peritos da Polícia Federal e membros da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a definição de parâmetros pode evitar que os consumidores sejam enquadrados indevidamente como traficantes de drogas, reduzindo o grande número de presos no país.
Há mais de 180 mil pessoas presas no país hoje por tráfico de drogas. O número de presos que eventualmente seriam beneficiados com uma decisão neste julgamento dependerá da concordância da maioria do STF com o estabelecimento de parâmetros que diferenciem consumo e tráfico e quais parâmetros seriam adotados.
No entanto, nenhuma decisão do STF levaria à libertação automática dos presos, explica a vice-procuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, à BBC News Brasil.
Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de droga e potencialmente impactada pelo julgamento, sublinha, teria de apresentar recurso ao Tribunal solicitando a revisão da sua pena.
25 gramas e seis plantas femininas
Caso o julgamento termine favorável à descriminalização do porte de pequenas quantidades de drogas, o STF discutirá os parâmetros de quantidade para diferenciar o usuário do traficante.
Na opinião dos defensores desta medida, isto poderia reduzir o que de outra forma seriam detenções confundidas com tráfico no país.
Quem possuir drogas para consumo pessoal não poderá mais estar sujeito às punições atualmente em vigor, como prestar serviços à comunidade ou participar de programas ou cursos educacionais, nem terá antecedentes criminais.
Os defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e membros da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem consumo de vendas faz com que muitas pessoas detidas em do país com pequenas quantidades de maconha ou cocaína, por exemplo, acabam presos pelo crime de tráfico.
No entanto, há organizações que participam no processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que as pessoas estão a ser presas injustamente por tráfico.
Barroso e Weber, por exemplo, propuseram 100 gramas de maconha como corte para diferenciar usuário e traficante. O valor segue parâmetros utilizados em outros países, como Espanha e Holanda.
Moraes e Mendes sugeriram 60 gramas, enquanto Zanin defendeu 25.
Os ministros também discutem a fixação de um número máximo de plantas de maconha para o usuário cultivar.
Luís Roberto Barroso, por exemplo, sugeriu que o usuário possa ter em casa seis plantas femininas (aquelas que produzem flores com THC para serem defumadas).
Os ministros destacaram, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados serviriam de referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que possua quantidade maior, ou classificá-lo como traficante, ainda que eles têm uma quantidade menor.
Isso dependeria de outros elementos que corroborassem o crime de tráfico, como apreensão de armas ou balanças para pesar drogas, por exemplo.
Fachin, ao votar em 2015, foi contra a adoção de critérios pelo STF, por considerar que caberia ao Congresso definir esse quantitativo.
Mas ele ainda pode rever seu voto, assim como fez Mendes, que também havia sido contra a fixação de parâmetros no início do julgamento.
Por que o julgamento se arrastou por anos?
Além dos diversos pedidos de revisão que interromperam o julgamento, o caso também ficou alguns anos sem ser discutido pelo STF durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
A ação foi retomada em 2023 e interrompida pelo pedido de vista de Toffoli.
Para os juristas que acompanham o tema, o Tribunal demorou a retomar o julgamento para evitar maiores tensões com o governo anterior, que se opôs veementemente a qualquer flexibilização nesta questão.
Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tenha uma postura abertamente favorável à descriminalização, membros de seu governo, como o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, defendem a medida com o objetivo de reduzir o grande número de pessoas presas no país.
“Temos que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não pode ser resolvida através de encarceramento, prisão e punição”, afirmou. disse Almeida, em entrevista à BBC News Brasil.
Com a demora no julgamento, houve mudança na composição do Tribunal, que ficou mais conservadora com a entrada de dois ministros indicados por Bolsonaro: Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
Além disso, Cristiano Zanin, nomeado por Lula em 2023, também se posicionou contra a descriminalização da posse para consumo.
Lula também nomeou o ministro Flávio Dino no final de 2023. A princípio, Dino não se pronunciará sobre o mérito principal desta ação, porque assumiu o lugar da ministra Rosa Weber, que já votou.
Porém, como o julgamento ainda está em andamento, pode ser necessário que o ministro se pronuncie em algum momento do caso.
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