A fila contornou o Parque Villa Lobos, bairro nobre de São Paulo, em uma tarde de junho.
Após minutos de espera, algumas pessoas choravam de emoção com a chance de conhecer a YouTuber brasileira Adeline Camargo, que mora em NÓS e se tornou referência em vídeos de mergulhar na lixeira.
A expressão em inglês significa “mergulho em lixeiras” — e significa exatamente isso: pessoas que entram e vasculham lixeiras em busca de produtos em bom estado e até mesmo novos que estejam descartado pelos americanos.
“Sei que muita gente quer uma lembrança de deposito de lixo”, registra no vídeo Adeline, que trouxe para o encontro no Brasil dezenas de produtos que encontrou para sortear entre seus seguidores. São maquiagens, bolsas, objetos de decoração…
O encontro em São Paulo reflete o fenômeno entre os brasileiros ávidos por vídeos sobre o lixo dos Estados Unidos.
São dezenas de canais no YouTube e perfis no Instagram, alguns de famílias inteiras, que mostram essa prática comum no país.
“O brasileiro é muito curioso, porque o americano desperdiça muita coisa, é um desperdício que deixa alucinado. Tem muita novidade”, diz Alessandra Gomes, capixaba que também Filma-se “mergulhando” no lixo, no estado de Massachusetts. Ela já arrecadou edredons, sofás, mesas e muita comida.
Nos Estados Unidos, em geral, a atividade não é ilegal, mas navega numa zona cinzenta.
Em 1988, no caso que ficou conhecido como Califórnia contra Greenwood, a Suprema Corte do país decidiu que não há “privacidade” no lixo deixado na calçada.
Mas regras específicas em estados e cidades sobre a questão das latas de lixo podem se sobrepor.
A atividade, por exemplo, pode ser considerada ilegal se envolver invasão de propriedade privada, se houver placa indicando que é proibida a adulteração ou se a lixeira estiver trancada com cadeado.
Entrar nessas áreas sem permissão pode resultar em acusações de invasão. Também pode haver reclamações sobre incômodo público ou risco à segurança na atividade.
Em vídeos gravados por brasileiros, geralmente não é possível saber se eles invadiram propriedades ou violaram proibições.
Pelo menos uma dessas pessoas disse à BBC News Brasil que foi detida pela polícia depois que uma loja a denunciou e teve que pagar fiança e passar por audiência judicial.
Vídeos que mostram brasileiros sendo “pegos em flagrante” conquistam grande audiência — a maioria deles são funcionários de lojas que pedem para eles saírem ou simplesmente permitem que continuem.
“Já fui pego pela polícia algumas vezes”, diz André da Silva, 49 anos, que se mudou do Rio de Janeiro para Rhode Island há 23 anos e hoje tem mais de 300 mil seguidores só no Twitter. Facebook com seus vídeos.
“Mas eles geralmente perguntam o que estou fazendo e eu explico que gravo vídeos. Na verdade, eles ficam chocados com as coisas que encontramos.”
Apesar do fenômeno recente nas redes sociais de países como Brasil ou El Salvador, a atividade faz parte da rotina dos americanos há décadas, explica Jeff Ferrell, sociólogo e professor emérito da Texas Christian University (TCU), que, há 50 anos , ele tem se concentrado no fenômeno — seja como pesquisador ou “mergulhando” ele mesmo em lixeiras.
Autor do livro Empire of Scrounge: por dentro do subsolo urbano de mergulho em lixeiras, coleta de lixo e coleta de lixo nas ruas (Império dos catadores: dentro do submundo urbano da busca em lixeiras, coleta de lixo e garimpagem na rua, em tradução livre), passou oito meses sobrevivendo apenas com o que encontrava no lixo.
Ferrell explica que o perfil dos “mergulhadores” de lixeiras é variado. Alguns, como ele, são movidos pela ideologia.
Eles podem ser chamados freegansque como princípio de vida boicotam o consumo e sobrevivem do que é descartado, ou organizações de caridade que distribuem esses bens e alimentos para moradores de rua ou necessitados.
“Muitas pessoas acreditam numa redistribuição de recursos. Isso é tirar dos ricos e dar aos pobres, porque o lixo dos ricos geralmente contém coisas de alta qualidade, coisas que ainda são muito úteis”, afirma a pesquisadora.
Mas os imigrantes, que na sua maioria não possuem os documentos necessários para residir nos Estados Unidos, diz Ferrell, também constituem sempre um grupo relevante nesta caça ao tesouro no lixo.
Entre o consumismo e o desperdício
Alessandra Gomes chegou aos Estados Unidos há cinco anos, aos 19 anos, em busca de um futuro melhor para ela e para o filho, que na época tinha menos de 2 anos.
Ela saiu de Ecoporanga, no Espírito Santo, onde mantinha um relacionamento conturbado com sua família humilde na zona rural da cidade, para cruzar a fronteira mexicana em direção aos Estados Unidos.
Quando chegou a Massachusetts, diz ela, viu muitas pessoas fazendo a mesma coisa. mergulhar na lixeira.
“Foi quando fiz o primeiro vídeo, mostrando algumas panelas e pratos que encontrei. O vídeo viralizou e vi que era um setor que tinha muita audiência”, diz Alessandra, que foca nas lixeiras de lojas e supermercados, pois nelas encontra muitos produtos novos que foram descartados.
Segundo o Espírito Santo, os brasileiros que assistem aos seus vídeos se dividem em dois grupos: os que se revoltam com o consumismo americano e a cultura do desperdício e os que são fascinados pelos produtos e querem imigrar para fazer o mesmo.
Os “mergulhadores” que se aventuram no lixo ficam sabendo o dia da coleta de cada região e ficam atentos quando há renovação no estoque de uma loja.
André da Silva, 49 anos, do Rio de Janeiro, explica, por exemplo, que quando há uma nova coleção de roupas de cama, as lojas tendem a jogar fora edredons, fronhas e lençóis da temporada passada.
Ex-dançarino no Brasil e ex-lavador de pratos nos Estados Unidos, André administra seu tempo entre sua empresa de demolição e a busca por lixeiras.
Foi enquanto trabalhava em uma loja, há seis anos, que ele percebeu o quanto os americanos jogavam coisas novas no lixo.
“Quando cheguei em deposito de lixoFiquei com medo”, diz André.
“Tudo era novo, embalado, toalhas e travesseiros caros. Liguei para o gerente da loja porque pensei que eles tinham cometido um erro. Aí ele disse que era uma besteira, porque eles perdem dinheiro guardando em estoque.”
André teve que alugar um caminhão para recolher a quantidade de produtos que estavam sendo descartados naquele dia.
Para o professor Jeff Ferrell, que aos quase 70 anos continua vasculhando o lixo alheio no Estado do Texas, já que os EUA são o principal país capitalista do mundo, a produção incessante de bens de consumo incentiva o descarte.
“É inerente à cultura do consumo: haverá muito desperdício sempre que um estilo de moda muda ou novas tecnologias são introduzidas”, diz Ferrell.
“Quanto mais orientamos a nossa economia em torno da produção e do consumo de bens, inevitavelmente mais resíduos produzimos.”
Além dos objetos em si, a alimentação também é parte importante do trabalho dos colecionadores-produtores de conteúdo.
Hoje, Alessandra e o marido se concentram em vasculhar as lixeiras dos mercados que vendem alimentos. Esse, aliás, é o aspecto que mais tem chocado a família.
“Tem muita coisa boa para consumo que é jogada fora. Alguns já expiraram, mas ainda são úteis. É chocante”, diz ele.
De acordo com Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar dos Estados Unidos (FSIS), “os fabricantes fornecem datas para ajudar os consumidores e varejistas a decidir quando os alimentos estão com sua melhor qualidade”.
“Exceto para a fórmula infantil, as datas não são um indicador de segurança do produto e não são exigidas pela lei federal”, afirma o FSIS em seu site oficial. Mas ainda assim, muita coisa é jogada fora.
Segundo Alessandra, a atividade de peneirar lixo rende entre US$ 200 (cerca de R$ 1.100) e US$ 300 (R$ 1.620) por mês com o que ela consegue vender. Os espectadores dos vídeos podem ganhar mais de US$ 100 (R$ 540). O marido também trabalha como pintor.
É lixo ou luxo?
Tocadores de música, bolsas, brinquedos caros, joias, relógios… O que mais chama a atenção dos brasileiros nos vídeos são na verdade os produtos caros que vão parar nas lixeiras dos americanos.
Os comentários vão desde “estou babando com tantas coisas maravilhosas” até “meu sonho é ter essas coisas, gostaria de ir para lá”.
Para o pesquisador Jeff Ferrell, que já encontrou abotoaduras da marca de luxo Tiffany e pulseiras de diamantes, a ênfase dada às marcas e ao valor dos produtos nas redes sociais acaba desviando a filosofia do movimento de mergulhar na lixeira.
“Acho irônico que as pessoas procurem bens de consumo em lixeiras. Em outras palavras, eles estão tentando transformar o desperdício novamente em um estilo de vida de consumo”, opina.
Mas os brasileiros ganham adeptos mesmo com as doações que fazem.
André da Silva explica que basicamente doa tudo o que encontra para famílias necessitadas ou para igrejas em Massachusetts e Rhode Island.
Alessandra, que cuida de dois filhos, se divide entre doar para famílias imigrantes do bairro e para consumo próprio.
“Não tenho vergonha de estar no lixo. Vim de uma família muito pobre, então tudo que eu puder aproveitar, eu aproveitarei.” E, segundo ela, poste.
A capixaba diz que “segura a mão de Deus” e continua realizando a atividade.
Na região onde você mora, as lojas têm se tornado mais hostis aos catadores de lixo, pois muitas pessoas acabam bagunçando e deixando lixo espalhado pela calçada.
Para quem explora os resíduos americanos há décadas, “há outra ironia” no sucesso digital da prática nos Estados Unidos.
“Qual é a chave para ser um bom mergulhador de lixo? É uma questão de ser discreto e nunca chamar a atenção para si mesmo. Eu nunca postaria nas redes sociais”, aconselha Ferrell.
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