“Se o risco de morrer do disco celeste é de 50%, para mim vale a pena.”
Isto é o que Harald Meller, professor da arqueologia do Estado Alemão da Alta Saxônia e diretor do Museu Arqueológico de Halle an der Saale, em Alemanha.
Com todas essas credenciais, é difícil imaginar que ele arriscaria a vida. Mas Meller é o herói improvável desta história, que começa com um assalto a um cemitério e inclui uma busca policial internacional e uma operação secreta.
No centro da caixa está uma peça feita de ouro, bronze e cobre, com potencial para reescrever a história da civilização europeia.
A história começa numa floresta no leste da Alemanha, que inclui um dos assentamentos humanos mais antigos da Europa.
Depois queda do muro de BerlimEm 1989, “traficantes do mercado negro chegaram do Ocidente e forneceram detectores de metal”, diz Meller. A intenção era procurar antigos cemitérios humanos.
Em 1999, dois ladrões de túmulos varreram a floresta, perto da cidade de Nebra, conhecida pelos seus assentamentos neolíticos.
Num determinado momento, seus detectores emitiram um sinal. Eles cavaram a terra e logo encontraram um tesouro esquecido há mais de 3.000 anos.
O que eles não sabiam é que haviam desenterrado um dos achados arqueológicos mais significativos do século XX. A descoberta mudaria a forma como pensamos sobre uma das épocas mais importantes da história da humanidade.
A Idade do Bronze começou há cerca de 4.500 anos, quando a verdadeira símbolos da civilização.
A humanidade deu um passo imenso. As culturas desenvolveram uma civilização urbana bem estabelecida, com arquitetura monumental e habitações sofisticadas.
Com os avanços vieram a astronomia e a filosofia — e, fundamentalmente, a forma de registrar conhecimentos, ideias e valores: a escrita.
Tudo isto se desenvolveu no Mediterrâneo Oriental, no Norte de África e no Oriente Médio e Próximo. Mas a história do norte da Europa parecia ser totalmente diferente. Lá não havia grandes cidades, nem formas arcaicas de escrita, nem sinais de filosofia.
É verdade que as rochas chegaram até nós dispostas em padrões precisos que claramente tinham algum significado. Mas estes monumentos são enigmáticos, pois o conhecimento da sua finalidade não sobreviveu.
As evidências encontradas pelos arqueólogos indicavam uma sociedade muito mais primitiva.
Entre os restos mortais estavam lanças, machados e, sobretudo, espadas. Estes instrumentos definiram o conceito de Europa Central e Noroeste da época como um lugar quase selvagem, muito diferente das civilizações sofisticadas da Europa. Egito e Grécia.
Mas isso foi antes da descoberta do objeto que ficaria conhecido como disco de Nebra.
A decisão
Em maio de 2001, Harald Meller acabara de ser nomeado arqueólogo-chefe de um dos mais importantes museus da Idade do Bronze da Europa, o Museu Halle, no leste da Alemanha.
Certa manhã, um colega mostrou-lhe algumas fotografias que mudariam a sua vida.
Eles foram levados pela gangue que saqueou o túmulo na floresta perto do museu dois anos antes.
As imagens mostravam o que parecia ser um tesouro da Idade do Bronze. E, entre as joias, ferramentas e espadas, havia um disco de aparência requintada.
“Nunca vi nada parecido”, disse Meller ao Serviço Mundial da BBC. “Você não via apenas o céu, mas um padrão distinto que talvez tivesse algum significado. Tive a sensação de que, se não fosse uma falsificação, seria uma descoberta incrível.”
“Fiquei muito emocionado”, destacou o arqueólogo. “Eu tinha certeza de que era autêntico por um motivo simples: falsificadores não fazem coisas que nunca foram vistas antes, porque para isso é preciso ter imaginação e conhecimentos complexos, caso contrário ninguém vai acreditar.”
“Minha experiência é que descobertas inesperadas nunca são falsas”.
O disco de Nebra atendeu a essa regra porque parecia ser a representação mais antiga dos céus já encontrada.
Meller teve uma ideia bizarra na cabeça: ele tentaria pessoalmente fazer todo o possível para localizar os criminosos e resgatar o disco para a ciência.
As pessoas que roubaram o túmulo venderam o objeto no mercado subterrâneo. Depois, mudou de mãos entre vários personagens sombrios daquele submundo.
Os comentários foram de que ele circulava com preço inicial em torno de US$ 300 mil — cerca de R$ 1,6 milhão, pelo câmbio atual.
Com a ajuda da polícia alemã, Meller seguiu todas as pistas que encontrou ao longo de um ano, sem sucesso. Até que descobriu que os saqueadores queriam vender sua história para uma revista.
Ele não conseguiu entrar em contato, mas diz que acabou recebendo “uma ligação de uma mulher que era mediadora da pessoa que tinha o registro”.
Após vários contactos, convenceu-a a encontrar-se num restaurante, com ele e “um colega do museu, que, na verdade, era um agente da polícia disfarçado”.
Foi assim que o arqueólogo se tornou líder de uma operação da polícia secreta.
“Jantamos com ela e seu advogado e tentei convencê-la a me vender ou pelo menos me deixar ver o registro”, diz ele.
A próxima ligação serviu para agendar um encontro em um dos centros do mercado underground da Europa: a cidade de Basileia, na Suíça.
A operação
O encontro aconteceria em um conhecido hotel da Basileia. Uma elaborada operação foi montada e Meller seria a “isca”.
A polícia suíça o seguiria a cada passo, mas ninguém poderia garantir a sua segurança.
“Avisaram-me: ‘Tenham em conta que o roubo de arte muitas vezes tem ligações com a máfia, com o crime organizado’”, recorda. “Nunca, jamais saia com eles, porque o que esses grupos normalmente fazem é convidar você para um hotel e depois te levar para um carro”.
“Basileia fica entre a Alemanha, a França e a Suíça. Assim que eles cruzam a fronteira, a polícia perde o controle e então encontramos você [morto] no rio Reno.”
Deixaram-no perto do hotel para que pudesse continuar a pé. De lá, Meller foi levado a um café no subsolo para se encontrar com uma mulher e um homem de cabelos grisalhos.
“Alto, entre 60 e 70 anos, nada amigável”, lembra. “A mulher era gentil.”
“Olhei em volta, mas não vi nenhum policial, apenas uma menina de cerca de 15 anos, um homem com uma perna só e o garçom, que nos trouxe café”.
Meller tentou desesperadamente manter a calma, mas havia muita coisa em jogo. “Uma reação errada, uma pergunta errada e tudo estaria perdido”, diz ele.
“Eu disse que precisaria verificar a autenticidade do disco. O homem não respondeu, mas tirou uma espada do bolso e me entregou para análise.”
Meller usou dois produtos químicos que recebeu de um especialista. Mas ele estava tão nervoso que errou na ordem das substâncias.
Decepcionado, ele tentou novamente. Finalmente, ele provou que a espada não era falsa. Mas o disco insistiu em não aparecer.
“Eu não tinha certeza de onde ele poderia estar”, lembra Meller. “Eu não sabia o que mais havia no bolso, talvez uma arma, mas o disco era grande demais para estar lá.”
“Por fim, o homem abriu o casaco e, de dentro da camisa, tirou algo enrolado em uma toalha. Era o disco e ele me entregou.”
Finalmente, Meller teve o disco em mãos.
“Minha primeira reação foi: ‘Uau, como isso é pesado e grosso’”, diz ele. “Porque nas fotos parecia uma fina folha de metal.”
“Então o que me impressionou foi a beleza. O ouro resplandecente, o verde profundo. E como especialista, eu tinha plena consciência de que era um artefato que me conectava diretamente com a Idade do Bronze. Fiquei entusiasmado, foi incrível. É emocionante. “
Logo depois, voltou à realidade do momento presente e sentiu a urgência de resgatar a peça. Ele não queria ser um dos poucos que poderia observá-la.
“Grande parte da arte roubada desaparece”, explica Meller. “É usado entre os traficantes de drogas como moeda de troca ou algo parecido. A polícia me explicou isso e disse que poderia acontecer”.
“Então, quando tive o disco em mãos, pensei: ‘Pegue-o e corra, tire-o dessas pessoas perigosas’. Mas a polícia me avisou para não fazer isso.”
Os criminosos pediram o dinheiro prometido, que ele não tinha. Portanto, exigiram que ele assinasse um contrato.
“Eles me disseram: ‘Mostre-me o dinheiro, assine este contrato'”, lembra ele. “Eu precisava encontrar uma solução.”
“Tive a ideia de dizer a eles que estava tão emocionado que precisava ir ao banheiro. Minha ideia era chamar a polícia.” Mas é claro que raramente há um bom sinal telefônico em um banheiro subterrâneo – e foi o que aconteceu naquela ocasião.
“Andei por todo o banheiro até chegar lá e disse: ‘Pegue-os!’ E quando saí, de repente, seis policiais apareceram do nada.”
Você se lembra da menina de 15 anos, do homem sem uma perna e do garçom? Porque eram todos policiais disfarçados.
O extraordinário
“Não sou espião, nem agente profissional”, destacou Heller, confessando que “foi muito difícil” para ele cumprir a sua missão.
Mas então, por que você estava disposto a correr um risco tão grande?
“Porque para nós, como seres humanos, é extremamente importante compreender de onde viemos”, respondeu ele enfaticamente.
“Normalmente, olhamos apenas cem, 200 ou 300 anos para trás e nos sentimos superpreparados; nos comparamos aos tempos medievais e acreditamos que, agora, somos os melhores.”
“Mas isso é um absurdo”, diz ele. “As pessoas da Idade do Bronze eram tão inteligentes quanto nós, não eram idiotas.”
“Então fiquei emocionado. Não tanto pelo tesouro ou pela arte, mas por estar absolutamente confiante de que esta é uma descoberta fundamental na história da nossa espécie. E eu queria fazer tudo o que pudesse para consegui-lo.”
Depois que as prisões foram feitas, o próprio Heller pôde pela primeira vez curtir a peça com calma.
Ali, incrustado em ouro, estava o motivo pelo qual o objeto era considerado mágico: uma incrível imagem do céu, com o que parecia ser o Sol, a Lua e as estrelas. Nada parecido jamais havia sido observado.
Pouco depois, a polícia recuperou o restante do tesouro encontrado com o disco. E, mais tarde, foi descoberto o local onde os objetos haviam sido escavados.
Todas essas informações foram importantes, pois o contexto não permite apenas datar o registro. Também ajuda a explicar seu significado.
Desde o resgate, diversos estudos revelaram diversos aspectos surpreendentes sobre o artefato. Um dos mais significativos diz respeito à sua idade e às estrelas.
Como o objeto é metálico, não é possível utilizar a datação por carbono, que seria a técnica mais precisa para determinar sua idade. Por isso, os estudiosos recorreram à datação associativa, considerando espadas encontradas no mesmo local.
O resultado é que os objetos datam de 1600 a.C. — o que é impressionante, considerando que um grupo de pontos que parecem ser estrelas também foi determinado como sendo idêntico aos desenhos mais antigos conhecidos da constelação das Plêiades.
Mapear as estrelas tem sido uma das maiores conquistas da humanidade – uma obsessão de acadêmicos e cientistas há milhares de anos.
Pelo que se sabe, as imagens realistas das estrelas só apareceram em 1400 a.C., no Egito. Sempre foram consideradas as imagens mais antigas conhecidas.
Mas o recorde de Nebra é 200 anos mais antigo. Portanto, aparentemente, os humanos do norte da Europa na Idade do Bronze eram, em alguns aspectos, tão sofisticados como as antigas civilizações do Egipto e do Oriente.
Para Heller, “é maravilhoso que o álbum do Nebra pertença a todos nós”.
“A memória e o património mundial ligam-nos, independentemente da ideologia. Stonehengepor pirâmides e pelo disco de Nebra – que possamos estar unidos pela arte e por estes maravilhosos monumentos.”
Em imagens
Ouvir episódio da série Outlookde Serviço Mundial da BBC (em inglês)que deu origem a este relatório, em Site de sons da BBC.
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