Insetos moídos para fazer tinta roxa. Cola para pele de coelho. Pincéis feitos com pelos de barriga de esquilo. Materiais que parecem inusitados, mas eram comuns na produção artística até o século XVII. E, por isso, são utilizados diariamente numa escola de arte de Londres, cuja história está intimamente ligada à Rei Carlos III.
A King’s Foundation School of Traditional Arts, fundada em 2004, é uma das organizações sem fins lucrativos da qual o monarca é presidente — anteriormente era chamada de Fundação do Príncipe, e mudou de nome com a ascensão de Carlos ao trono, em 2023. O monarca costuma visitar exposições e participar de cerimônias de formatura de estudantes.
O termo “artes tradicionais” aqui é levado muito a sério: os alunos são incentivados a dominar técnicas seculares (de pelo menos 300 anos atrás, mas em alguns casos milenares) para produzir seus próprios materiais de trabalho.
Isto envolve triturar pedras e insetos para obter um pigmento de uma determinada cor ou usar peles de animais para fazer colas e telas, como no passado, quando não se discutia a causa animal.
“Há uma criação constante ao nosso redor, de microcosmo em microcosmo. O que estamos ensinando é um processo de descoberta de sua verdadeira identidade, através da compreensão de que você não está separado dos materiais com os quais está criando”, diz o diretor da escola, Khaled Azam. “Temos uma ideia muito clara daquilo em que estamos focados e vemos isto como algo muito importante para o que o mundo precisa de abordar hoje. Isto é algo que Sua Majestade vem dizendo há muito tempo.”
Os artistas que procuram a escola de artes tradicionais da King’s Foundation estão justamente atrás dessa jornada espiritual que a escola propõe.
Até o momento, apenas três brasileiros estudaram lá, sendo que dois deles já se formaram.
Catarina Pignato, mestranda e única brasileira atualmente na escola, conta que as múltiplas possibilidades proporcionadas pela tecnologia a deixavam desnorteada.
“Me formei em Design Gráfico, totalmente ao contrário do que faço aqui hoje. Mas comecei a crescer nesse ambiente, inteligência artificial, tudo feito por robôs. se perde e desaprende, perdendo referência e conhecimento”, afirma.
Catarina mostra ao repórter alguns dos materiais que utiliza. Bolsista, ela desenvolve seu trabalho focado em pinturas em pele de animais —um material caro, diga-se de passagem.
Uma folha grande de couro bovino seco custa cerca de 120 libras (aproximadamente R$ 766).
A cola para pele de coelho é um verdadeiro curinga, sendo utilizada como aglutinante de pigmentos, selante e no preparo de suportes de pintura.
“Tem um cheiro muito forte, um cheiro muito específico de… natureza. Você pode comprar em pó ou em folhas secas de couro, colocar na água, esperar algumas horas e vai ficar quase como uma geleia”, explica.
O artista Gabriel Chaim, 29 anos, diz que se decepcionou com as escolas contemporâneas e se deparou com as práticas tradicionais ensinadas na escola.
“O processo não está desconectado do produto final. A viagem que você tem de A a B, é basicamente a verdadeira obra de arte. Se você for até a montanha e coletar os materiais, a pintura começou quando você deu o primeiro passo. Isso exige um certo tipo de filosofia, um processo espiritual”, afirma.
A dificuldade na obtenção de materiais ajuda até mesmo a compreender as escolhas feitas pelos artistas ao longo do tempo.
“Tem muito trabalho que você acaba pensando duas vezes onde implementar. E aí você também começa a entender o uso de certos materiais mais preciosos. Por exemplo, quando você percebe que a pedra lápis-lazúli é usada para fazer as roupas de Maria , Você percebe que não seria aplicado se fosse algo comum, mas como as vestes de Nossa Senhora têm um certo protagonismo, utiliza-se um produto com status maior”, observa.
Chaim representou a escola em evento com o rei em dezembro de 2023, apresentando a Carlos III alguns de seus trabalhos em têmpera de ovo — técnica que utiliza gema de ovo na tinta, de acordo com os princípios das artes tradicionais.
‘Estado de consciência’
Disciplina, processos alquímicos, jornada. Há, de facto, um carácter espiritual no trabalho desenvolvido, algo assumido pela escola, embora sem conotações religiosas.
“É um estado de consciência. Mas não falamos de filosofia e religião e assim por diante. Descobrimos fazendo. A verdadeira questão é fazer a descoberta da jornada dentro de si, a jornada da disciplina, do foco e da paciência. E aí surge um momento de iluminação”, analisa o diretor.
Nas paredes da sala de aula é possível ver um quadro com os 10 princípios inspiradores, escritos à mão. Estes incluem: “reconhecimento da divindade”, “a visão espiritual é o sopro vital da civilização” e “compreensão da tradição como uma renovação contínua”.
A mensagem, é claro, ressoa nos alunos.
“Sinto-me muito mais conectado a um sentido divino e, ao mesmo tempo, sinto-me muito mais desconectado do que é esse divino. Vendo todas essas repetições e todos esses padrões da natureza, é simplesmente impossível dizer que isso acontece sem motivo. .” , diz Catarina.
O tipo de originalidade cultivada e respeitada na King’s School vai além da produção de obras de arte excepcionais por indivíduos.
Para a escola, originalidade significa “desde o início”, cultivando disciplina e perfeição técnica para que, diz Azzam, os artistas se tornem “os veículos adequados para trazer o mundo da inspiração para este mundo físico”.
Portanto, a Geometria, considerada o elo entre todas as artes sacras e tradicionais, é disciplina obrigatória — facilidades como o uso de softwares de desenho são rejeitadas justamente por isso.
“Quando você desenha algo à mão, usando um compasso em um pedaço de papel, há energia e criatividade que fluem do meu coração, para a minha cabeça, para a minha mão instintivamente. no domínio da tecnologia, eu apenas digo a este computador ‘desenhe um círculo, gire-o seis vezes’, não tenho esse processo de aprendizagem”, diz Khaled Azzam.
“Não se trata de entender Geometria apenas para desenhar padrões, mas de entender a criação do mundo”, afirma. “Estudamos os movimentos dos planetas e das estrelas, as formações biológicas ao nosso redor. Estudamos cristais, flores, e vemos que há uma ordem ali, e essa ordem nunca muda. Como uma flor quíntupla, que você vê em todos os lugares. O padrão dessas flores não é apenas um padrão bonito; é o mesmo padrão que Vênus desenha ao redor da Terra a cada oito anos.”
Mas afinal, quem embarca nesta “jornada” terá que tipo de trabalho neste mundo cada vez mais acelerado?
Acredite, as possibilidades não são poucas.
Muitos museus da Europa, como o Victoria and Albert, em Londres, têm em seu gigantesco acervo (no caso do V&A, 4,5 milhões de objetos) um grande acervo de miniaturas indianas e persas, por exemplo, ainda não catalogadas – e apenas pessoas com o nível de conhecimento oferecido pela King’s Foundation conseguem analisar as obras e apontar, com base nas cores e materiais utilizados, onde, por qual civilização e em que período da história foram feitas.
“Quando você avalia o tipo de pigmento que foi utilizado, de acordo com sua composição, você sabe de que região do mundo veio aquele tipo de verde e de que época”, afirma Gabriel Chaim.
A Escola de Artes Tradicionais da Fundação Rei não é propriamente uma escola de restauro, mas o profundo conhecimento proporcionado também permite aos artistas, se seguirem este caminho, não cometerem erros como os do fresco Ecce Homo, do pintor Elias García Martínez, totalmente alterado após um intervenção desajeitada de uma paroquiana do santuário de Borja chamada Cecilia Giménez.
Numa daquelas mudanças que só a internet é capaz de proporcionar, a obra, que foi ridicularizada mundialmente em 2012, virou objeto de culto e hoje sustenta o fluxo turístico da pequena cidade espanhola, de 5 mil habitantes.
Khaled Azam diz ainda que a própria escola absorve parte dos alunos para sua equipe.
“Todos eles vêm com o objetivo de serem artistas. Sempre digo aos alunos que o que vocês aprenderam, vocês têm a responsabilidade de transmitir. Então, procuramos envolvê-los em algum conteúdo didático conosco, seja no programa aberto ou em projetos de extensão “, diz o diretor. “Além disso, empregamos muitos dos nossos alunos porque temos outros seis centros em funcionamento em todo o mundo. Dizemos que vamos ficar de olho neles.”
A Escola de Artes Tradicionais da King’s Foundation mantém atualmente centros regionais na China, Arábia Saudita, Egito, Azerbaijão, Paquistão e Escócia.
“Não temos uma grande campanha publicitária. Não divulgamos nossos programas. Somos muito claros sobre o que fazemos, e as pessoas vêm porque entendem que querem aprender algo que seja mais universal, mais relevante para quem elas são . Todo mundo é obcecado por produtos. O que dizemos aos nossos alunos é que vamos levá-los em uma jornada e há um processo pelo qual você alcançará um produto final”, conclui Khaled Azzam.
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