A nossa ingenuidade, a de quem quis acreditar que um ditador poderia submeter o seu poder à votação. Segundo a oposição, o resultado seria de 73% para Edmundo González Urrutia, derrotando Nicolás Maduro, o que é corroborado pela contagem independente, de 66% para González a 31% para Maduro. Mas foram 51,21% para Maduro, talvez uma percentagem tabulada por um algoritmo já conhecido.
No dia da eleição, a “polícia eleitoral” atuou, fechando ou abrindo locais de votação, e grande parte das atas não foram consideradas —o sistema eleitoral saiu do ar antes de atingir 80% dos votos. As duas candidatas mais fortes, María Corina Machado e Corina Yoris, foram consideradas inelegíveis. Em suma, tudo é como se espera de uma ditadura, sem a viva ingenuidade da nossa esperança.
Não há razão para um ditador votar – há apenas razão para um ditador usar uma eleição simulada para tentar legitimar-se. Só será legítimo se tiver a permissão do povo. O líder uruguaio Dom José Artigas, no Congresso de abril de 1813, deixou este princípio que as crianças recebem nas escolas: “Minha autoridade emana da vontade de vocês, povo. E cessa diante de sua presença soberana”.
Quando a soberania popular cessa e a vontade de um homem, seja ele quem for, é imposta, é porque já não existe democracia. Mesmo que Maduro fosse derrotado, ele teria seis meses até a sua posse para inventar um ataque da Guiana à honra da Venezuela. O estado de guerra seria o pretexto para manter o comandante supremo Maduro no poder, já que a oposição não pretende tomar Essequibo.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou como observador seu assessor de política externa, Celso Amorim, que trata Maduro com o mesmo amor com que tratou o esquerdista Manuel Zelaya, deposto pelo Congresso e pela Suprema Corte de Honduras, que se suicidou no Embaixada do Brasil em Tegucigalpa e a converteu em diretório político. O Itamaraty teve muito trabalho para emitir uma nota sobre a ainda inaceitável transparência das atas, mas saudando “o caráter pacífico do dia eleitoral”.
Os observadores da ONU e da União Europeia não viram esta paz. Há mortos e feridos nas ruas. Estátuas de Hugo Chávez derrubadas, cartazes de culto à personalidade de Maduro removidos. O presidente de esquerda do Chile, Gabriel Boric, postou algo no X que pode muito bem servir de recado para Celso Amorim.
“Exigimos que observadores internacionais não comprometidos com o governo relatem a veracidade dos resultados”. E foi fundo: “Exigimos total transparência das atas”. Com a posição que levou Jair Bolsonaro à inelegibilidade, Boric postou: “Não reconheceremos nenhum resultado que não seja verificável”.
O governo brasileiro, com a imagem global consolidada de Lula como parceiro de Maduro, teve que aderir à óbvia exigência democrática de transparência, de atas auditáveis. Nossa história é parecida com a de 1945, quando nossos soldados voltam da Itália, onde deram sangue para derrubar duas ditaduras e são recebidos no Rio por um ditador.
Bem se saiu a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, que aproveitou a oportunidade e cancelou a viagem de técnicos da Justiça Eleitoral a Caracas. Hoje eles seriam cobrados e não teriam respostas. Eles poderiam ser afetados pelo que está acontecendo, correndo o risco de parecerem fiadores do processo.
A eleição, ao contrário do que Maduro pretendia, revelou mais da realidade que ainda estava escondida pelos apoiantes dos regimes totalitários – como disse Lula, “democracia relativa”. O que Maduro fez mostra aos ingênuos que não há democracia na Venezuela. E que ditador não sai na votação.
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