Para quem passou pela tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro tomaram a Praça dos Três Poderes e invadiram seus palácios com o objetivo de causar uma crise institucional e destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva , a nota do PT reconhecendo a “vitória” eleitoral do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, revela um partido político que perdeu a noção da realidade em que opera.
A nota trata Maduro como um “presidente reeleito” e exclui que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano divulgue dados de cada local de votação, principal exigência da oposição e de vários países. O Itamaraty considera esta divulgação um “passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado da eleição”. A CNE garante que Maduro venceu com 51,2% dos votos, contra 44% de Edmundo González, o principal adversário. Ninguém acredita.
O PT abandonou a centralidade da democracia e subordinou os seus valores ao alinhamento ideológico com forças de esquerda na América Latina que ainda se guiam pela velha agenda nacionalista, uma linha de acção em que o principal inimigo são os Estados Unidos e a democracia é apenas um instrumento de acumulação de forças para chegar ao poder, que deve ser mantido a qualquer preço, mesmo através de fraude eleitoral e da repressão feroz da oposição. Isto é o que está acontecendo agora na Venezuela.
Não é compreensível a aposta do PT no alinhamento de Maduro ao eixo formado por Rússia, China, Cuba, Irão, Síria, Madagáscar e Coreia do Norte, além de Honduras e Nicarágua, para permanecer no poder. Esta é a chave geopolítica – e estratégico-militar – para a qual caminha a Venezuela e que não interessa nem um pouco ao Brasil se se tornar o divisor de águas da política latino-americana. É uma aposta na “guerra fria” e não no multilateralismo, que norteia a política externa do próprio Lula, e não apenas a tradição diplomática do Itamaraty.
Para um partido fundado em 1980, a posição do PT sobre a Venezuela, na sequência desta crise diplomática, é uma infantilidade política que beira o complexo de Peter Pan. A síndrome é inspirada no famoso personagem dos contos de fadas de JM Barrie, que não aceita crescer e prefere permanecer para sempre no mundo da infância. Uma mistura de imaturidade e narcisismo político.
Grosso modo, a ideologia consiste em separar a produção de ideias das condições históricas sob as quais elas são produzidas. Em outras palavras, dar às ideias o status de universalidade, atemporalidade e a priori. A ideologia pressupõe um poder superior e externo, um poder espiritual autónomo, capaz de mascarar contradições reais.
É o que mostra a liderança do PT, que sabota os esforços do Itamaraty para construir uma solução em que prevaleçam as regras do jogo democrático e coloca Lula numa saia mais justa do que já estava, do ponto de vista diplomático. O PT se isola, enfraquece o presidente e leva água ao moinho da oposição.
A violência cresce
Há, de fato, um esforço de Lula para chegar a uma posição sobre a Venezuela que não separe o Brasil da maioria dos países do G20, que se reúne em novembro no Rio de Janeiro. Ontem, o presidente brasileiro conversou com o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, e reiterou sua posição de aguardar a divulgação dos registros eleitorais antes de reconhecer ou não a vitória de Maduro. Esta posição é partilhada com Colômbia, México, Inglaterra e União Europeia, que também exigem transparência na contagem dos votos.
Porém, também ontem, em entrevista, Lula disse que a situação na Venezuela é “normal” e que a contestação do resultado pela oposição deve ser levada a tribunal. Certamente tentará distanciar-se de Maduro, mas não romperá relações com a Venezuela, nem apoiará uma intervenção militar no país vizinho.
Na Venezuela, a revolta popular que se seguiu à proclamação da vitória de Maduro sem comprovação do resultado pelos registos eleitorais, duramente reprimida, já resultou em 11 mortos, 48 feridos e 749 presos. Maduro acusa parte da oposição e dos países de incitar um suposto golpe de Estado no país contra o resultado eleitoral.
Ontem, o parlamento venezuelano reconheceu o resultado, enquanto as forças de segurança reprimiram os protestos. A CNE ainda não divulgou a acta que comprova o resultado anunciado como deveria e o governo afirma que o sistema sofreu um ataque hacker. Mas proclamou a vitória de Maduro com 51,21% dos votos, contra 44% de González e 4,6% dos outros oito candidatos.
O chefe do Ministério Público venezuelano, Tarek William Saab, descreveu os protestos como terrorismo. É a narrativa de uma ditadura. Estando no poder há 11 anos, Maduro terá mais seis anos no cargo.
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