O estresse diplomático com a Nicarágua é um ponto de inflexão na política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ocupa o centro do debate político por causa das eleições na Venezuela e se tornou uma espécie de “flor de recesso” para o Congresso, como se diz em O jargão político de Brasília. A ruptura entre Lula e o presidente Daniel Ortega, que são aliados históricos, surpreende a extrema direita, mas também deixa os dirigentes do PT perplexos, porque rompe com a “cosmologia” da esquerda tradicional, para usar uma expressão que remonta aos filósofos. Gregos.
Antes do surgimento da filosofia, a Mitologia Grega apresentava a origem do Universo através de narrativas cosmogônicas; titãs – Caos, Cronos e Gaia – foram os pilares do surgimento do Cosmos. Até que Tales de Mileto, o primeiro filósofo grego, não buscasse uma explicação sobrenatural, ele postulou que a origem do mundo estava na natureza: “Tudo é água”.
Na mitologia da esquerda brasileira, após o golpe militar de 1964, a revolução socialista deveria ser confundida com a derrubada do regime militar, como aconteceu com o ditador Fulgêncio Batista em Cuba, em 1959, daí a opção pela luta armada no década de 1970. Quando esta opção já estava derrotada e a oposição avançava na via eleitoral, com o MDB a obter sucessivas vitórias, o sucesso da Revolução Sandinista em 1979 renovou estas esperanças. No mesmo ano, no governo João Figueiredo, a anistia permitiu o retorno dos exilados e a libertação de oposicionistas que estavam presos.
A reforma partidária promovida pelo regime militar, neste contexto, tornou possível o multipartidarismo. A fundação do PT reuniu sindicalistas liderados por Lula; militantes de comunidades eclesiásticas de base católica, como Frei Beto; intelectuais, como Florestan Fernandes; e ex-membros de organizações que participaram da luta armada, incluindo José Dirceu.
A revolução popular liderada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), contra a ditadura de Somoza na Nicarágua, renovou a esperança de que haveria uma ruptura política e não um processo negociado de redemocratização do país, como ocorreu em 1985, com a eleição de Tancredo Neves.
O termo Sandinismo refere-se a Augusto César Sandino, um guerrilheiro que lutou contra a influência dos Estados Unidos na Nicarágua durante as décadas de 1920 e 1930. Foi um movimento fora do partido comunista, numa nação independente desde 1821, mas com instituições políticas frágeis. e liderança corrupta.
O ex-guerrilheiro Daniel Ortega tornou-se presidente do país em 1985, eleito após seis anos de governo provisório, controlado pelos sandinistas, que expropriaram as propriedades dos Somoza e seus aliados. Cerca de 20% das terras cultiváveis do país foram consideradas pertencentes ao povo, nas quais foram criadas 1.500 fazendas, empregando cerca de 50.000 nicaragüenses. O setor financeiro e o complexo exportador foram nacionalizados, o que garantiu o controle absoluto da economia pelos sandinistas.
Romper
No entanto, houve uma forte reação de grupos paramilitares de extrema direita, os “Contras”, financiados pelo governo Ronald Reagan, que minaram a paz social na Nicarágua. Em 1990, Violeta Barrios de Chamorro obteve 55% dos votos e derrotou Daniel Ortega, pondo fim ao poder dos sandinistas. No entanto, Ortega regressou ao poder em 2007 e está no comando do país desde então. Em 2021, renovou o mandato em eleições muito semelhantes às da Venezuela e tornou-se ditador. Mais de 30 líderes da oposição foram presos, incluindo sete candidatos presidenciais que não puderam concorrer.
Esta quinta-feira, o governo da Nicarágua expulsou o embaixador brasileiro em Manágua, capital do país centro-americano, depois de o diplomata Breno Dias da Costa não ter comparecido aos 45 anos da Revolução Sandinista, o que irritou Ortega. A cerimônia aconteceu no dia 19 de julho. Em reação à decisão de Ortega, o Itamaraty decidiu expulsar a chefe da Embaixada da Nicarágua no Brasil, Fulvia Patrícia Castro Matu, uma reação previsível no âmbito das regras de reciprocidade diplomática.
A relação com Ortega tem sido tensa desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou, a pedido do Papa Francisco, intermediar a libertação de Rolando Álvarez, o bispo católico de Matagalpa, que foi condenado a 26 anos de prisão por conspiração e disseminação de notícias falsas. Ortega se recusou a conversar com Lula sobre isso.
A expulsão do embaixador brasileiro na Nicarágua é vista como um possível precedente para o que poderá acontecer na relação do Brasil com a Venezuela. O Itamaraty acredita que a situação pode se repetir com o governo Maduro, caso haja uma escalada na relação entre os países, após as eleições de 28 de julho. Nicarágua, Honduras, Bolívia e Cuba são os únicos países das Américas que reconhecem a vitória de Maduro.
O Brasil não rompeu relações diplomáticas com Ortega, mas a expulsão de embaixadores não é trivial. É difícil imaginar que Ortega tenha tomado a decisão sem consultar Maduro e outros aliados. É como se fosse uma mensagem para Lula de que as relações com a Venezuela poderiam tomar o mesmo rumo.
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