A diplomacia brasileira adota uma posição cautelosa em relação às eleições na Venezuela, apesar da proximidade ideológica entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolás Maduro. Segundo o Itamaraty, a prioridade atual é garantir a publicação das atas e a manutenção de um canal com o regime chavista. Além disso, o Brasil também tem interesses em comum com o país vizinho, como a compra de energia e a expansão do comércio, que poderão sofrer consequências em um possível corte nas relações diplomáticas, com a perda de influência regional e o aumento do impacto da uma crise migratória. Apesar dos cuidados em relação às eleições, a demora em uma postura mais dura abre precedentes na América Latina, apontam especialistas ouvidos pelo Correspondência.
Do ponto de vista geopolítico, a Venezuela é um país sensível para todo o continente, mas especialmente para o Brasil, com o qual partilha uma fronteira de 2.200 km. Cercado pelas sanções dos Estados Unidos, o regime de Nicolás Maduro aproximou-se ao longo dos anos da China e da Rússia, que forneceram apoio essencial para manter o chavista no poder e ter um aliado estratégico na América do Sul. A Rússia, por exemplo, investiu na produção de petróleo venezuelana e se tornou o principal fornecedor de armas e equipamentos militares do país.
A China, por sua vez, tem uma relação económica ainda mais estreita: estima-se que os investimentos na Venezuela totalizem 60 mil milhões de dólares, repartidos por diferentes projetos. O valor é metade do total investido pelos chineses na América do Sul e no Caribe.
Uma prova da proximidade é que o russo Vladimir Putin e o chinês Xi Jinping estão entre os poucos chefes de Estado que reconheceram imediatamente a reeleição de Maduro, apesar de uma série de indícios de fraude. Para Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor do Instituto de Relações Internacionais (Irel) da Universidade de Brasília (UnB), a aproximação de outras potências gera tensões no continente, enfraquecendo tanto a influência brasileira entre seus vizinhos quanto o objetivo do governo Lula. governo. unir a governação regional.
“A nível geopolítico global, (a Venezuela) associou-se a potências extra-regionais (Rússia, China, Turquia e Irão), cuja presença na região gera tensões com países sul-americanos, EUA e Europa”, disse o professor. Na prática, esta influência aumenta a preocupação mais concreta de uma nova crise económica e convulsão social na Venezuela. Os analistas temem que a escalada da violência do regime de Maduro e o endurecimento das sanções internacionais possam levar a Venezuela a uma nova crise, aumentando os conflitos e os fluxos de migrantes para países vizinhos, como o Brasil. Neste cenário, Maduro poderia convidar à interferência estrangeira na região.
“(Ele) é irresponsável o suficiente para fazer isso se achar que isso aumenta suas chances de permanecer no poder. Seu respeito pelos vizinhos é próximo do que ele demonstra pela sua própria população: nenhum. Mas tenha cuidado: você não deve subestimar Ele é pragmático, tem um sistema de inteligência e uma polícia política eficazes e entende que não tem interesse em romper relações com o Brasil. O risco de ele romper relações com o Brasil é baixo”, calcula ainda Ramalho da Rocha.
“A nível geopolítico global, (a Venezuela) associou-se a potências extra-regionais (Rússia, China, Turquia e Irão), cuja presença na região gera tensões com países sul-americanos, os EUA e a Europa”
Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor da UnB
Segundo Ricardo de Toma-García, doutor em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esse risco de instabilidade na fronteira norte obriga o Brasil a assumir a liderança na prevenção de incidentes. “A eventual erosão da ordem política e social da Venezuela e a subsequente eclosão de um conflito envolvendo interesses de potências extrarregionais e a inserção de empreiteiros militares colocam o Brasil em situação de relativa vulnerabilidade na região amazônica”, explicou. Estima-se que uma nova crise poderá levar à saída de entre 20% e 25% da atual população venezuelana, ou seja, até 7 milhões de novos refugiados do continente.
O Brasil também tem valores a receber do empréstimo de US$ 1,5 bilhão feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a realização de obras de infraestrutura no país. Em relação à balança comercial, porém, o país sul-americano tem pequena participação no comércio com o Brasil. Em 2023, o fluxo foi de US$ 1,153 bilhão, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços. A estimativa para 2024 é que o número se aproxime de US$ 1,2 bilhão este ano. Em 2013, no auge das relações comerciais, o valor ultrapassava os 6 mil milhões de dólares.
Mediação de grupo
Todos esses fatores ajudam a explicar a cautela do Itamaraty ao lidar com o tema. O ministério exige a publicação dos registros eleitorais, mas sem acusar a possibilidade de fraude na reeleição de Maduro. A posição difere daquela adotada por outros países, como Chile e Argentina. No entanto, permite que o Brasil tenha um canal de diálogo tanto com o ditador quanto com a oposição —países que denunciaram fraudes tiveram suas representações diplomáticas expulsas. Há expectativa de que o presidente Lula converse com Maduro por telefone, mas acompanhado dos presidentes da Colômbia, Gustavo Petro, e do México, Andrés Manuel López Obrador.
“A eventual erosão da ordem política e social da Venezuela e a subsequente eclosão de um conflito envolvendo os interesses de potências extrarregionais e a inserção de empreiteiros militares colocam o Brasil em uma situação de relativa vulnerabilidade no entorno amazônico”
Ricardo de Toma-García, analista internacional
No entanto, a própria manutenção do governo Maduro traz riscos para o Brasil, como a mobilidade do crime organizado através das fronteiras, a mineração ilegal e a exploração ambiental e a falta de políticas de saúde, que impõem riscos à saúde. Ramalho da Rocha avalia que a existência de um regime autoritário incentiva outras “aventuras ditatoriais”, como a de Nayib Bukele, em El Salvador, e a de Daniel Ortega, na Nicarágua — com quem o Brasil se envolveu em recente embate diplomático, após a expulsão dos seus respectivos embaixadores.
“E também no Brasil. A questão não é ideológica, é moral. Não é uma questão de opção ‘esquerda’ ou ‘direita’, como as pessoas querem insinuar. É, antes, desrespeito às leis, às instituições democráticas e à direitos humanos fundamentais. O ex-presidente Jair Bolsonaro, que se autodenomina conservador e ‘de direita’, tentou implementar no Brasil um modelo semelhante ao que (Hugo) Chávez e Maduro implementaram na Venezuela -Presidente Chávez Apenas discordei da atenção. que o tenente-coronel deu aos pobres”, diz o professor.
Por sua vez, Toma-García destaca que, embora a posição brasileira tenha sido interpretada como um gesto de prudência, a demora em uma cobrança mais dura é preocupante e abre precedentes na América Latina. “É inaceitável que o representante da maior democracia da América do Sul seja tolerante com situações que jamais seriam aceitas no Brasil, incluindo a falta de transparência nos atos de escrutínio, a perseguição a testemunhas partidárias, a proclamação de Maduro como presidente eleito até sem provas e a judicialização da questão, incluindo a abertura de processos criminais contra o candidato Gonzalez e o líder da oposição Machado, além da prisão de mais de 1200 ativistas”, lista.
“O Brasil não pode desconsiderar a recusa da CNE em realizar o processo de totalização das atas no prazo de 48 horas estabelecido pela lei eleitoral da Venezuela. Acredito que o país deveria estudar os fundamentos apresentados pelo Carter Center e outras organizações que tradicionalmente participaram do processo. o processo Em nenhuma circunstância devem ser recomendados novos processos eleitorais até que o Estado venezuelano permita uma auditoria real e imparcial do processo.”
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