Na quarta semana da enchente no Rio Grande do Sul, que deixou 461 dos 497 municípios gaúchos submersos, um mar de lama e montanhas de entulhos tomam conta das cidades gaúchas onde as águas já retrocederam. Ainda não se sabe quanto será o custo total ou quanto tempo levará para reconstruir o estado. Enquanto as águas do Guaíba, acima do nível da cheia, descem muito lentamente, a Lagoa dos Patos ainda sobe e ameaça cidades vizinhas, incluindo Pelotas.
A imagem faz todo o sentido. O Dilúvio é o nome do evento bíblico (Gênesis 7 e 8), que começou no ano 2.516 AC e continuou por 12 meses lunares e 10 dias, ou exatamente um ano solar. Segundo a Bíblia, foi um castigo divino causado pela corrupção e violência, na nona geração de Adão. Deus então decidiu purificar a Terra. Havia apenas uma família fiel a Deus, a de Noé, “homem justo e íntegro”.
Por ordem divina, Noé fez uma arca com 133 metros de comprimento, 23 metros de largura e 14 metros de altura. Deus ordenaria que Noé entrasse na arca, levando consigo sua esposa e três filhos, com suas respectivas esposas, e todos os animais que pudesse. A chuva começa no dia 17 do segundo mês; quando para, predominam as águas, 15 metros acima, durante meses. A arca repousa apenas sobre uma das montanhas de Ararat, 150 dias após o início do Dilúvio. A terra só fica seca no primeiro dia do ano novo (Gênesis 8:13).
Segundo a narrativa bíblica, o Dilúvio foi universal e eliminou todos os homens, exceto Noé e sua família, que foram preservados na arca; isto é, seríamos seus descendentes. Toda religião busca uma explicação para fenômenos que escapam à observação empírica. Desde os tempos mais primitivos, o ser humano precisa explicar fenômenos naturais como chuva, vento, eclipses, etc. Eles buscam respostas metafísicas, ou seja, além do que pode ser visto e tocado.
O drama no Rio Grande do Sul tem dimensões bíblicas, mas as explicações são científicas. A subjetividade não está nos fenômenos climáticos, que já estavam sendo previstos, mas na política e no comportamento em relação à natureza. As chuvas estendem-se agora a Santa Catarina, com oito municípios, onde a tragédia se repete, em estado de emergência: Passo de Torres, Sombrio, São João do Sul, Balneário Gaivota, Jacinto Machado, Maracajá, Araranguá, Rio do Sul.
Nunca o Sul do país viveu uma tragédia tão grande. Há previsão de mais chuva. A economia gaúcha entrou em colapso, com lavouras destruídas e indústrias paralisadas, com perda de grande parte dos equipamentos; o comércio foi igualmente devastado, com a destruição de um grande stock de mercadorias. Em muitos lugares, é impossível reconstruir as habitações e/ou é imprudente devolver o que resta.
Foco na reconstrução
Tal destruição simultânea nunca foi vista, embora sejam frequentes as tragédias causadas por deslizamentos de terra e inundações, bem como negligência e intervenções humanas desastrosas. Em todas as regiões, os eventos climáticos e a ocupação inadequada de várzeas e encostas registram ocorrências que devem servir de alerta aos governos e à sociedade. Com o aquecimento global, todo o clima mudou, os oceanos aumentaram, as chuvas e as secas serão mais severas.
No caso do Rio Grande do Sul, há evidências de que a população gaúcha não possui recursos materiais, econômicos e físicos para enfrentar o problema, embora tenha muita energia e vontade política. O governador Eduardo Leite (PSDB) propõe adiar as eleições municipais para não perder o foco na reconstrução. Não é uma ideia sem sentido, embora favoreça prefeitos que não seriam reeleitos e prejudique os candidatos mais competitivos. O debate eleitoral passa necessariamente pela reconstrução do Estado. Cabe à Justiça Eleitoral decidir o que fazer diante da realidade.
Quando as águas baixarem, uma eternidade bíblica para 540 mil moradores de rua, será a vez da União, do estado e dos municípios, que têm se dedicado a ajudar as vítimas e abastecer a população (água, alimentos e roupas secas), se organizarem para um planeamento racional, que tenha em conta a experiência vivida por todos, as limitações dos recursos disponíveis e a necessidade de repensar a forma de reconstruir as cidades.
Cerca de 28% do investimento produtivo anual do Rio Grande do Sul (construção residencial, máquinas e equipamentos e infraestrutura), estimado em R$ 28,6 bilhões, foi perdido. Quase metade (48%) das escolas públicas foram destruídas ou inundadas. Muitos hospitais e centros de saúde ficaram inutilizáveis. Mais de 90 trechos de 51 rodovias estaduais foram bloqueados. O principal aeroporto do país, Salgado Filho, em Porto Alegre, não deverá voltar a funcionar antes de setembro.
Estima-se que a receita do governo gaúcho caia em R$ 14 bilhões. Não há dinheiro suficiente para regressar à vida normal a curto prazo, mesmo com toda a ajuda da União. O povo gaúcho vive uma tragédia de proporções diluviais.
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