A morte de Vladimir de Carvalho, um dos mais aclamados documentaristas brasileiros, me surpreendeu, embora agora saiba que ele estava convalescendo de um ataque cardíaco há três semanas, mas nesta quinta-feira não resistiu à insuficiência renal. Não me passou pela cabeça que esse paraibano acometido pela peste, de 89 anos, pudesse ter um infarto “caminhando” pelas quadras do Plano Piloto. Há pouco tempo, compartilhei um de seus passeios noturnos. “Deixa o Uber em paz, vamos caminhar; conversamos mais um pouco”, ele me desafiou, rápido e sorridente, como um menino.
Nesta sexta-feira, durante velório no Cine Brasília, ex-alunos, equipe de cinema e seus antigos companheiros do antigo PCB compartilharam a mesma surpresa. Ele era mais velho, mas sempre pareceu o mais jovem entre seus amigos e companheiros. Principalmente em termos de ideias, ele não foi um náufrago do passado. Apesar de fazer parte do grupo de comunistas que atendeu ao chamado de Juscelino e veio para Brasília, na esteira de Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro, alguns para fundar a Universidade de Brasília (UnB), da qual Vladimir seria professor titular de Cinema.
O ativismo político de Vladimir ajuda a compreender a sua obra cinematográfica. Foi amigo e parceiro dos documentaristas Linduarte Noronha e Eduardo Coutinho, respectivamente, diretores dos aclamados Aruanda e Cabra Marcado para Morrer, filme interrompido pelo golpe de 1964 e retomado apenas na década de 1980.
Remanescente do Cinema Novo, guarda em seu Centro de Memória a moviola que pertenceu a Glauber Rocha, com quem também trabalhou. Vladimir fez parte do antigo CPC da União Nacional dos Estudantes, em Salvador, e de uma geração de cineastas ligados ao comitê cultural do então chamado Partido, entre os quais Alex Viany (Cinco Times Favela), Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas) se destacou. ), Leon Hirszman (Não usam black-tie) e João Batista de Andrade (O homem que virou suco).
Ao saber da morte do amigo, João expressou sua emoção nas redes sociais: “Chocado com esta notícia. Vladimir, maior de nossas referências como documentarista brasileiro. Um cineasta de extensa produção, sempre focado nas grandes questões da sociedade brasileira, social injustiças e as lutas do nosso tempo.”
A luz dura dos documentários de Vladimir Carvalho era modernista, mas influenciada pelo cinema russo do início do século, cujas obras colecionou clandestinamente, durante o regime militar, o que lhe valeu o apelido de Vorochenko, inspirado no cineasta ucraniano Oleksandr Dovjenko, autor de o filme Terra, um clássico do cinema universal.
Ex-presidente do Diretório Central Estudantil da UnB, Arlindo Fernandes, hoje consultor legislativo do Senado, conta que, no final da década de 1970, foi atrás de Vladimir para conseguir um exemplar do clássico O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, para mostrar no Cineclube Universitário, não por acaso chamado Aruanda.
Referência para cineclubes de Brasília, Vladimir recusou: “Se eu emprestar, você vai para a prisão e eu perco o filme”. Depois, distribuiu exemplares de Outubro e de Alexandre Nevski, também de Eisenstein: “Eles não sabem o que são!” Contudo, foi um grande divulgador das obras de Volker Werner Herzog e Rainer Werner Fassbinder, seus contemporâneos, ícones do novo cinema alemão surgido na década de 1960.
Da natureza selvagem ao Cerrado
Jovens cineastas alemães trabalharam com orçamentos baixos e misturaram o Neorrealismo italiano, a New Wave francesa e a New Wave britânica. Herzog teve um processo de produção cinematográfica único, como desconsiderar storyboards, enfatizar a improvisação e colocar elenco e equipe em situações semelhantes às dos personagens de seus filmes, como se eles próprios estivessem vivendo a trama. Essa também foi a realidade do nosso cinema.
A estética clássica do cinema russo e do novo cinema alemão podem ter influenciado Vladimir, mas o que marcaria seus filmes é a saga country que trouxe o homem e as desigualdades da agitação do Nordeste para o concreto armado de Brasília no Cerrado do Planalto Central. Romeiros da Guia e A Bolandeira retratam a realidade nua e crua do sertão e das nossas desigualdades sociais. O País de São Saruê, sua obra-prima, fala da seca e da pobreza na região do Rio do Peixe, confrontada com a utopia da terra da abundância.
Selecionado para o Festival de Brasília no início dos anos 1970, Saruê foi vetado pela censura; o festival de cinema mais antigo do país foi proibido por três anos. Em Velhos conterrâneos de guerra, Vladimir retratou a construção de Brasília na perspectiva dos candangos: vieram de longe para construir a Esplanada e foram expulsos para a periferia. A capital da arquitetura modernista não era deles.
No filme, a entrevista de Oscar Niemeyer sobre a morte de trabalhadores em uma das obras é muito tensa. O arquiteto genial fica furioso e manda Vladimir, um comunista como ele, ir se foder. Brasília é sede do Barra 68: Sem Perder a Ternura, sobre a invasão da UnB pelos militares, e do Rock Brasília: Era de Ouro, que conta a história das bandas Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Vladimir também era pop.
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