A ideologia defendida pelos militares integrantes do movimento golpista identificado pela Polícia Federal permanece intensamente nas Forças Armadas e também de forma subliminar em parte da sociedade. O alerta vem de especialistas ouvidos pelo Correspondência. Para o pesquisador Rodrigo Lentz, o maior perigo é a mentalidade de “dominação militar sobre os civis”. O advogado Leonardo Pinheiro, professor universitário da área constitucional e administrativa, ressalta que os significados de “anistia” e “direito ao esquecimento” não devem ser confundidos.
O debate chegou ao auge quando o Correspondência constatou que os estudos acadêmicos de dois dos 24 policiais detidos no grupo golpista mostram que, para eles, as Forças Armadas têm atribuições semelhantes às desempenhadas em 1964. Segundo o general da reserva Mário Fernandes, os jovens negros devem ser treinados para atuar contra o que chama de “guerra irregular”, enquanto o tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira afirma que houve uma “revolução”, e não um “golpe” liderado pelos militares para derrubar o governo João Goulart, estabelecendo regime militar.
Na avaliação de Leonardo Pinheiro, é preciso ter cautela ao observar que há quem pense que anistia política, como foi o caso do Brasil, significa acabar com o que aconteceu depois da ditadura. “Embora etimologicamente o termo anistia signifique esquecimento, politicamente serve muito mais como mecanismo de superação de supostos impasses históricos. No Brasil, acaba servindo como perdão institucional irrestrito para crimes cometidos por agentes do Estado. O entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é que estes não podem ser anistiados pela legislação interna”.
Em busca Pensamento político dos militares no Brasil: mudanças e continuações na doutrina ESG (1974-2016)o professor Rodrigo Lentz, da Universidade de Brasília (UnB), mostra que grande parte da ideologia das Forças Armadas, anterior a 1964, permanece preservada. Ele alerta que não houve mudanças desde então, nem mesmo por meio da redemocratização, e que existe um movimento social sério. “Consenso de domínio militar sobre civis”, alerta, na página 305 da tese.
Legado
Ao analisar o pensamento político dos militares, de 1974 a 2016, Lentz constatou que a chamada “revolução de 64” e a defesa do seu “legado” fazem parte dos pilares da identidade das Forças Armadas. Destaca que existe uma ideologia, conhecida nos militares como “valores e ética”, alimentada pela educação militar “formal e, sobretudo, informal” usada para “produzir coesão” em torno de um pensamento único. Citando o manual da Escola Superior de Guerra (ESG), o investigador sublinha que, na página 196, do documento, há uma recomendação para colocar a “consciência” da defesa das instituições acima de qualquer crítica.
Segundo Lentz, não houve mudança na essência do pensamento que administra as Forças Armadas após o golpe de 1964. Muito pelo contrário — segundo o professor — defendem a manutenção dos serviços de contrainteligência como forma de preservar a ordem nacional. Mencionam também a necessidade de colocar a segurança do Estado acima de qualquer situação, incluindo a defesa dos direitos humanos.
Para o pesquisador, é fundamental que a sociedade decida agir. Sugere ação imediata. “Observar as impressões digitais da atual doutrina de segurança nacional no pensamento político civil seria fundamental para explicar a condescendência política ao alto nível de autonomia preservada da organização militar em relação ao sistema político”, destaca, na página 304 da tese .
Constituição
O artigo 142 da Constituição de 1988 descreve as responsabilidades das Forças Armadas. Além do caput, há três parágrafos e 10 itens. As punições também são definidas lá. Os militares, segundo a legislação nacional, “sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria”. Apesar desta definição clara, na prática, as interpretações permitem que ocorram avanços.
Na análise de Lentz, esse movimento só ocorre porque as Forças Armadas não sofreram uma mudança profunda após 1964. “Pelo menos desde 1994, a oposição democrática ao regime tem dirigido o Estado sem promover a refundação das Forças Armadas que a democracia liberal-pluralista exigiu. E o mais grave: sem colocar esta reforma fundamental no centro das suas estratégias políticas”, afirma.
Segundo o pesquisador, também é responsabilidade da sociedade reagir ao que ele chama de “naturalização do chamado dos militares à política, operado por governos civis de ideologias diversas”. Segundo ele, há uma “assimilação” que permite que essas forças continuem atuando, sem restrições.
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