“A festa foi linda, cara/ Fiquei feliz/ Ainda guardo teimosamente/ Um cravo velho para mim/ Sua festa já murchou, cara/ Mas com certeza/ Esqueceram uma semente/ Em algum canto do jardim/ Eu sei que tem léguas que nos separam/ Tanto mar, tanto mar/ Eu também sei o quanto é preciso, cara/ Navegar, navegar/ Cantar primavera, cara/ Aqui estou precisando/ Manda de novo/ Um pouco de cheiro de alecrim”. Ao assistir às cerimônias realizadas nesta quarta-feira, para comemorar a derrota da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, no Palácio do Planalto, lembrei-me da letra de Tanto Mar, de Chico Buarque, sobre a Revolução dos Cravos, que resultou do colapso do colonialismo português e derrubou a ditadura de Salazar em 25 de Abril de 1964.
Seu impacto no Brasil também se traduziu na ampla mobilização política da oposição brasileira nas eleições de novembro daquele ano, que levou o MDB a uma vitória eleitoral espetacular, que abalou o regime militar, já desgastado e com aparentes fissuras. Naquela época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já era líder do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. No ano seguinte, foi eleito presidente do sindicato e iniciou sua carreira como principal dirigente do “novo sindicalismo brasileiro”. Lula ainda era avesso a partidos políticos e nem sonhava em fundar o PT, o que só aconteceria em 10 de fevereiro de 1980, no governo Figueiredo.
Nesta quarta-feira, Lula fez dois discursos, um escrito pelo marqueteiro Sidônio Palmeira, que será seu novo ministro da Comunicação, e outro improvisado, em que reconheceu seu desconforto com as críticas ao ato, devido à ausência dos demais chefes de Poderes e a participação popular ficou restrita a pouco mais de mil militantes petistas, a maioria deles comissionados no próprio governo.
“Hoje é dia de dizer em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva, ao contrário do que os golpistas planejaram em 8 de janeiro de 2023”, disse Lula, referência ao filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado pela ganhadora do Globo de Ouro Fernanda Torres, sobre a trajetória de Eunice Paiva durante a ditadura militar, após seu marido, Rubens Paiva, ser preso e assassinado.
A cerimônia no Planalto contou com a presença de ministros, parlamentares, governadores e representantes dos Três Poderes, além dos comandantes das Forças Armadas, cuja participação Lula fez questão de agradecer. Embora seu discurso escrito fosse institucional e amplo, seu improviso era personalista e sectário, praticamente dedicado à sua trajetória pessoal e ao protagonismo do PT em seu governo.
Hegemonismo
Com orgulho, Lula se orgulha de ter criado um partido enraizado na sociedade brasileira, que o levou ao poder em 2002, 2006 e, pela terceira vez, em 2022. De improviso, disse que as coisas que acontecem no mundo sempre começam com poucas pessoas : “Às vezes, começam com uma pessoa. A campanha das Diretas Já começou com um ato do Partido dos Trabalhadores em novembro de 1983, que nem foi divulgado pela imprensa brasileira, apenas pela IstoÉ deu uma pequena matéria sobre o nosso evento, que aconteceu em frente ao Pacaembu. E então, a campanha das Diretas se transformou na maior manifestação física que o povo brasileiro conhece. Foi uma manifestação extraordinária da qual tive o prazer de participar, ao lado do povo. Povo brasileiro, nossos queridos companheiros médico Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Franco Montoro, Miguel Arraes e tantas outras figuras eminentes da política brasileira”.
Porém, Lula era personalista e sectário. A campanha só ganhou força após a entrada de Ulisses e dos governadores de São Paulo, Montoro, de Minas, e Leonel Brizola, do Rio de Janeiro. Não foram mencionados resquícios da campanha das Diretas Já ainda vivas, nem mesmo Fernando Henrique Cardoso, presidente por dois mandatos e que lhe entregou a faixa presidencial.
Até o improviso de Lula, era possível fazer uma avaliação generosa de que o ato foi esvaziado por fatores até fortuitos, como as viagens do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do presidente do Supremo Tribunal Federal ( STF), Luís Roberto Barroso. Ou politicamente cíclicos, como o embate entre o ministro Flávio Dino, do STF, indicado por Lula, e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sobre a suspensão do pagamento das chamadas “emendas secretas” . Ou ainda por dificuldades por parte do próprio governo, que fez má publicidade preparatória, o que até seria compreensível dada a mudança de guarda na comunicação governamental.
Depois, porém, tudo ficou mais claro. A gravata vermelha de Lula — em vez da azul, amarela e verde que ele também gosta de usar, ou mesmo da faixa presidencial, que seria mais simbólica do 8 de janeiro — não foi um descuido do personal stylist, mas um ato deliberado de afirmação de o protagonismo do PT no evento e no governo: “Estamos aqui para lembrar que, se estamos aqui, é porque a democracia venceu. Caso contrário, muitos de nós talvez estaríamos presos, exilados ou mortos”. No momento em que negocia uma reforma ministerial e precisa aprovar o pacote fiscal no Congresso, ele deve ter seus motivos. Mas é um sintoma terrível do hegemonismo petista e do consequente isolamento político de Lula.
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