Com mais de cinco décadas de atuação em defesa dos direitos humanos, a procuradora federal aposentada Ana Maria Lima de Oliveira, de 69 anos, assume a presidência da Comissão Brasileira de Anistia — vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e responsável por analisar pedidos de reconhecimento e reparação económica para pessoas perseguidas politicamente e suas famílias por agentes do Estado. Para ela, o momento é de celebração pelos efeitos do filme. Eu ainda estou aquimas também de “reconstrução em terra arrasada”, já que a comissão praticamente deixou de funcionar durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro. O presidente considera fundamental que o Supremo Tribunal Federal (STF) retome o debate sobre a Lei de Anistia e julgue a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 – que questiona anistia política para agentes do Estado acusados de crimes comuns como homicídio , abuso de autoridade, lesões corporais, desaparecimentos forçados, violações e atentados ao pudor, principalmente contra opositores do regime político da época. “Não se trata de revanchismo. Mas de justiça. Os torturadores não podem ficar impunes, anistiados”, enfatiza. Leia a entrevista abaixo.
A senhora foi nomeada no dia 13 de janeiro e 10 dias depois o filme Eu ainda estou aqui recebeu três indicações ao Oscar. Na sua opinião, isto é um bom presságio para o trabalho da Comissão de Amnistia?
Nós, da Comissão de Anistia, decidimos tudo coletivamente. Nós apenas acreditamos que algo funciona assim. Divulgamos uma nota em que destacamos a importância do filme, baseado no lindo livro de Marcelo Rubens Paiva. Então, reproduzo aqui parte do que falamos nas redes sociais. “Queremos expressar publicamente o nosso entusiasmo e alegria pelo incrível alcance e sucesso deste magnífico filme. Eu ainda estou aqui. Através da Comissão Brasileira de Anistia, criada em 2001, muitas histórias como essa foram contadas. Famílias devastadas pela brutalidade e autoritarismo de grupos que tomaram de assalto o Estado brasileiro. Pais, mães, filhos, filhas, de todas as classes sociais, que foram perseguidos, presos, torturados, mortos, desaparecidos, ignorados, humilhados. Cada processo contém uma história de luta e injustiça. Alguns talvez entendam que é doloroso, que é uma ferida que não deve ser mexida, que é deprimente enfrentar tanta covardia e tanta força bruta. No entanto, na Comissão da Amnistia temos a oportunidade de garantir a abertura de um espaço público digno.”
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O filme de Walter Salles ganha esse reconhecimento num momento atípico do contexto político nacional e internacional. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump tomou posse e, aqui, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comanda o país após quatro anos de um governo que representa a antítese do seu. Como você vê essas situações?
Tudo isso é extremamente importante. Infelizmente, o Brasil é um país sem memória. É um país que teve mais governos ditatoriais do que democráticos e tudo ficou invisibilizado. Não podemos permitir que isto continue. Por esta razão, a Comissão da Amnistia prepara-se para trabalhar em conjunto com outros sectores do governo. Aguardamos audiência com o Ministro (da Educação) Camilo Santana para sugerir medidas de implementação, nos currículos escolares, para preservar a memória política e histórica do país. Devemos lutar pela educação para evitar a repetição de acontecimentos desastrosos. Em sala de aula com crianças e jovens, com professores através de cursos de especialização.
Você está na Comissão de Anistia como conselheiro há 17 anos. Houve uma ruptura no último governo. A senhora disse que encontrou um desmantelamento da escola. O que aconteceu?
A sensação que tivemos, ao entrar na comissão, foi de terra arrasada. Um cenário devastador. Viemos de uma gestão em que se acreditava que os perseguidos eram, na verdade, os principais culpados; e os torturadores, as vítimas. Há processos, que ainda estamos levantando, que foram abandonados. Muitos em caixas eletrônicos, que precisam ser analisados. Há pelo menos 5.500 nesta situação, em comparação com cerca de 700 só no ano passado. É importante ter em mente que muitas das pessoas envolvidas nestas ações têm mais de 80 anos e outras, infelizmente, já faleceram. O Estado precisa responder, não pode demorar. Nosso objetivo é acelerar esses testes. Como nos reunimos uma vez por mês, queremos julgar 300 casos. Mas faremos um esforço para apreciar um número maior.
Além dos julgamentos rápidos, quais são as outras prioridades da comissão?
Junto com o Ministro Macaé Evaristo (Direitos Humanos e Cidadania), trabalharemos para dialogar com todos os setores. Como disse, no Ministério da Educação a luta será pela preservação da memória coletiva, histórica e política voltada para a educação para não se repetir. Com a Advocacia-Geral da União (AGU), queremos diálogo institucional. Com o Ministério da Saúde, é fundamental o apoio ao apoio psicológico aos perseguidos e às suas famílias —todos precisam de apoio porque a sua saúde mental, de alguma forma, foi afetada. E, finalmente, uma parceria contínua com a Comissão sobre Mortes e Desaparecidos Políticos e todas as representações de pessoas anistiadas e organizações de direitos humanos. Somente o trabalho conjunto constrói algo verdadeiramente válido para todos.
Há quem diga que a compensação financeira é uma bênção do Estado, porque os valores podem chegar a R$ 100 mil, fora a indenização permanente e quem recebe parcelada. O que você diz diante desse tipo de acusação?
Respondo que a reparação econômica é apenas um dos pontos, porque a reparação integral envolve aspectos, como psicológicos, já que essas violações são transgeracionais. Filhos, netos, irmãos e toda a família sofrem. Nada paga por isso. Sem falar na reparação da memória, da história e, sobretudo, que a Justiça seja feita. Por isso, queremos retomar as discussões sobre a Lei de Anistia, no Supremo Tribunal Federal (STF), que atualmente se encontra paralisada. Não se trata de revanchismo, mas de justiça. Os torturadores não podem ficar impunes, anistiados. A anistia não foi para isso. A expectativa é que o ministro Flávio Dino volte ao tema no Supremo. O Estado brasileiro precisa pedir desculpas pelas violações passadas. Aqueles que cometeram estas ações devem responder por elas. Caso contrário, continuaremos a ter que lidar com uma polícia que não defende, mas viola. Isso faz parte do reparo abrangente.
Período de regimes de exceção
Ao longo do século XX, a América Latina teve vários governos ditatoriais, liderados principalmente por militares. Em comum, o terrorismo de Estado, as violações dos direitos humanos e a repressão. O Brasil viveu sob esse regime durante 21 anos — de 1964 a 1985. Em 1988, foi promulgada a Constituição, restaurando direitos e buscando eliminar o medo que ainda pairava no país.
No Brasil, os presidentes militares foram Humberto de Alencar Castello Branco, Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.
Na Argentina houve vários episódios de gestões ditatoriais, mas o último foi de 1976 a 1983. O país julgou seus ditadores e principais colaboradores e, no cinema, retratou o período em filmes como A História Oficial e O segredo em seus olhos.
A ditadura no Chile durou de 1973 a 1990 e foi comandada pelo general Augusto Pinochet Ugarte. Um museu que mostra as atrocidades cometidas naquela época, especialmente no Estádio Nacional de Santiago, mantém viva a história do período negro. O regime de exceção chileno também chegou às telas com Ausente (Ausente), do cineasta grego Costa Gavras. Mais recentemente, o filme Nóde Pablo Larraín conta a história de um publicitário convidado a aderir à campanha do “não” ao referendo que decidiria se Pinochet permaneceria no poder.
Na Bolívia, o regime excepcional durou de 1964 a 1982, sendo o período do general Hugo Banzer (1971-1978) considerado o mais brutal. No Uruguai, Juan Maria Bordaberry era considerado um fantoche dos militares, assim como Belaúnde Terry no Peru.
No Paraguai, a ditadura de Alfredo Stroessner durou de 1954 a 1989 e foi deposta por um golpe militar liderado pelo general Andrés Rodriguez. Faleceu no exílio no Brasil, em 2006, em Brasília.
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