O debate sobre a criminalização do aborto foi um dos que mais gerou polêmica no Congresso Nacional no primeiro semestre legislativo. Proposto pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em coautoria com outros parlamentares da bancada evangélica, o Projeto de Lei (PL) 1904/2024 foi aprovado com urgência em poucos segundos, no plenário da Câmara dos Deputados. O texto propõe a proibição da assistolia fetal para interromper gestações superiores a 22 semanas, mesmo nos casos em que a prática é permitida por lei, como o estupro.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a assistolia fetal é a forma mais segura de realizar um aborto em gestações avançadas —casos que geralmente ocorrem em crianças e adolescentes vítimas de abuso e que demoram para reconhecer o estado da gravidez. No Brasil, o aborto é permitido em casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mãe ou gravidez de feto anencéfalo (sem cérebro). Nas três situações não há restrição de tempo para a realização do procedimento.
Porém, em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução que proíbe os médicos de realizarem assistolia fetal em gestações superiores a 22 semanas. A entidade defende que existe “possibilidade de sobrevivência fetal” neste período de gestação — pesquisas revelam que há entre 2% e 14% de chance de o feto sobreviver fora do útero nesta idade gestacional.
O Ministério Público Federal (MPF) chegou a pedir explicações “técnicas e jurídicas” para embasar a resolução. Posteriormente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, decidiu proibir a resolução do conselho, por considerá-la inconstitucional.
Qualquer mulher e criança que se enquadre em uma das três exceções da legislação brasileira deverá ter direito ao aborto garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A única exigência para que os profissionais de saúde realizem o procedimento é a palavra da vítima ou de seu representante legal, no caso de menores.
Todos os serviços de saúde deveriam oferecer esse atendimento em um ambulatório de violência sexual – porém, segundo levantamento da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apenas 200 dos 5.568 municípios brasileiros têm estrutura para realizar o aborto legal. A maioria desses hospitais está concentrada nas regiões Sudeste e Sul.
Realidade
Todos os anos, no Brasil, 20 mil mulheres engravidam por estupro e são realizados 2 mil abortos legais, segundo estudo da UFSC, com dados de 2022. A diferença entre o número de casos de mulheres que têm direito e aquelas que realmente o realizam mostra que o acesso é difícil.
O texto que tramita na Câmara prevê que uma mulher que tentar abortar após 22 semanas poderá ser acusada de homicídio, com pena de até 20 anos de prisão. É o dobro da pena máxima para uma pessoa condenada por estupro. O Correio conversou com a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), que lançou um abaixo-assinado com quase 200 mil assinaturas pedindo o arquivamento do PL, e com a deputada Bia Kicis (PL-DF), coautora do projeto, que deverá ir a votação no segundo semestre. Leia abaixo trechos das entrevistas.
SÂMIA BOMFIM | Deputado Federal (PSol-SP)
Como está sendo processada a lei do aborto?
A última informação oficial é que o mérito não será votado imediatamente. Lira deverá instalar um grupo de trabalho no início do segundo semestre. Ele ainda não definiu o número de integrantes nem a composição. Procuram um relator que seja centrista e possa conversar com os dois lados. Sabemos que o grupo evangélico, o PL, quer muito votar esse projeto este ano. Nosso medo e suspeita é que entre nas negociações para eleição do Conselho de Administração.
Como foi o caso da última vez…
Por isso Lira ficou tão irritado, claramente envergonhado, com o ocorrido. Primeiro porque para a bancada evangélica não há perdas, principalmente para Sóstenes. Já para Lira não vi muito ganho. Porque ele se desgastou muito individualmente.
E por que há tantas manifestações do setor conservador do Congresso?
Acho que querem arrumar o texto para responder ao desgaste da sociedade. Mas nisto estão a propor que em vez de as mulheres serem presas, elas têm de morrer. Na prática, defendem o aborto clandestino.
Como você avalia as opiniões na bancada feminina?
Acho que em relação a esse projeto conseguimos estabelecer, mesmo não tendo sido divulgado, uma maioria (contra o PL). Há uma maioria aí que não quer mudanças na legislação atual, não quer retrocesso, e um grupo minoritário que pensa que a legalização do aborto deve avançar em mais casos. Então, acho que de alguma forma é um retrato do pensamento médio da sociedade brasileira. Não é surpresa que, até agora, não tenha havido uma figura pública feminina na Câmara defendendo o projeto.
Há Alegação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) no Supremo Tribunal Federal, proposta pelo Psol. Essa discussão está em andamento?
A ADPF 442 está protocolada no Supremo desde 2018 e o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal, já disse que não pretende definir a pauta por enquanto, mas esperamos que ela seja definida até o final do ano. administração.
Conseguiremos ter esse debate um pouco mais aberto daqui para frente?
Acho que esse recuo agora pode ser uma brecha, um pontapé importante. As mulheres abortam, então vamos falar disso, das motivações, que são diversas, inclusive da escolha da mulher, da vontade da mulher em relação ao seu planejamento reprodutivo familiar.
Em relação ao papel do Supremo Tribunal Federal, tem havido uma discussão muito forte sobre o quanto legislar ou não. Qual é a sua opinião sobre isso?
O Supremo Tribunal Federal tem o papel de avaliar o que é inconstitucional e o que viola princípios fundamentais. E foi a partir daí que movemos a ADPF a questionar se a atual lei do aborto viola a dignidade humana. É um método de tortura, implica uma situação de desigualdade entre classes e raças no Brasil. Na verdade, eles (ministros do STF) deliberam sobre a omissão do próprio Congresso Nacional em atuar em questões importantes e a Constituição de 1988 define tudo.
Como está a discussão sobre a legalização em outros países?
Esse debate avançou na Colômbia, no México, na Argentina, no Chile… e no Brasil, que é a maior parte do continente, a situação é muito grave. Só é autorizada em três casos e agora, com esta lei, poderíamos ficar atrás dos países do Médio Oriente.
É um problema de saúde pública?
Sim, porque se ela decidir, ela vai fazer (o aborto), e pronto. A diferença é se ela é pobre ou rica, se é branca ou se é negra. Se ela for esposa de político, filha de político ou amante de político, ela fará isso e ninguém saberá, ela terá segurança porque tem dinheiro e vai para uma clínica clandestina que vai cobrar caro. Agora, se ela for uma mulher negra e pobre, ela fará o que puder. Então, o risco de morte é muito alto.
BIA KICIS | Deputado Federal (PL-DF)
Qual é o objetivo do chamado “projeto de lei antiaborto”?
Este é um projeto muito importante porque trata da assistolia fetal, que é o assassinato de um bebê no útero, quando o bebê está pronto e viável fora do útero. E uma coisa que muitas vezes as pessoas não prestam atenção é que depois de 22 semanas não há mais aborto. Essa criança terá que ser retirada através de uma cirurgia, que é o parto. Então, ou a mãe dará à luz um bebê vivo ou morto. O que a gente quer é que essa mulher, que já passou pelo trauma do estupro e vai ter que passar por uma cirurgia, que é um parto, não tenha que passar por esse outro trauma de ter o bebê morto dentro da barriga. Deixe o bebê sair vivo e então ele poderá ser entregue para adoção.
Você foi criticado por apoiar a penalização das mulheres. Por que você defende essa posição?
O projeto foi exagerado e, portanto, será corrigido. A questão de equiparar o homicídio a pena altíssima para a mulher, já votamos a urgência (do projeto) na Câmara com o compromisso de alterar o texto. As falácias eram tão grandes que era melhor removê-las e criar um grupo de trabalho para falar sobre elas. Agora, este grupo discutirá mais o assunto, visto que tantas narrativas surgiram. Nada melhor do que debater mais para que a verdade seja dita. As discussões pertencem ao parlamento e, portanto, todos os temas têm de ser decididos no parlamento. Quando um assunto como esse vai, por exemplo, ao Judiciário, o Supremo decide permitir o uso de drogas e o aborto e você tira a oportunidade de debate.
Esses temas não deveriam ser discutidos no STF?
Na verdade, a única coisa que deveria acontecer era o ministro Alexandre de Moraes rever sua decisão e deixar a resolução do Conselho Federal de Medicina voltar a vigorar.
Mas, com a legislação atual que permite o aborto em três situações, a resolução do CFM não se sobrepõe à lei?
Não, a lei não exige que isso seja feito. A lei não exige assistolia. O Conselho Federal de Medicina tem que regulamentar isso, são eles que tratam dos médicos, que regulamentam a profissão. O Código Penal data de 1940, naquela época não se falava em idade ou tempo de gestação para fazer um aborto porque naquela época ninguém considerava que o aborto pudesse ser feito aos seis, sete, oito meses de gravidez. Isso não existia.
Você comparou o aborto após 22 semanas ao parto. Não é muito tempo para manter uma gravidez indesejada?
Ela não precisa esperar nove meses. O aborto, quando permitido, já é permitido nas primeiras semanas. Então, por que esperar 22 semanas? Se uma pessoa pode fazer um aborto às 12, 8 ou 14 semanas. Acontece que a partir da 22ª semana, com base no conhecimento científico, não é mais um aborto propriamente dito.
Se a justiça demorar e a vítima não puder fazê-lo antes das 22 semanas, o que acontece?
Sabemos que, na prática, na vida real, quando uma mulher alega que foi estuprada, ela aborta em qualquer lugar, hospital público, clínica. O problema é que antigamente era exigido que fosse feito um Boletim de Ocorrência para que o estuprador pudesse ser investigado, mas o Ministro (da Mulher) revogou essa portaria. Então, hoje uma mulher afirma que foi estuprada, não importa se ela foi estuprada ou não, ela faz um aborto e nenhum estuprador será investigado. Além disso, as pessoas que dizem querer defender as mulheres estão defendendo o estuprador.
No caso de um pai que estupra a filha ou esposa e há medo de denunciar, o que deve fazer?
O projeto não aborda isso, é outra questão, as pessoas que têm medo de denunciar. Encorajamos as pessoas a denunciar isso. Foram criados canais de denúncia e um centro de apoio às mulheres vítimas de abuso. Sou uma pessoa que coloca emendas nas Casas das Mulheres. Então, nós realmente queremos proteger a vida das mulheres. No nosso projeto não importa quem é o estuprador. Queremos que o estuprador seja investigado. Se você eliminar a necessidade de investigar, estará deixando a mulher nas mãos de um abandono.
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